Biógrafo de Ney Matogrosso explica personalidade de artista em livro
Em entrevista ao portal Metrópoles, jornalista Julio Maria fala dos desafios de escrever sobre o artista
atualizado
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Inaugurada em abril de 1960, um ano depois, Brasília continuava um grande canteiro de obras, com prédios se erguendo e vias riscadas por toda parte. Era em torno desse cenário de constante movimentação que orbitavam, entre outras coisas, um cinema, um teatro, alguns restaurantes e uma boate. Entre os 150 mil habitantes da época – diluídos entre funcionários públicos, comerciantes e trabalhadores –, estava o jovem de 19 anos, Ney de Souza Pereira, que acabara de deixar para trás, dois anos de vida militar na Aeronáutica para tentar uma vaga no Laboratório de Anatomia no novíssimo Hospital de Base do Distrito Federal. Começava, assim a passageira, mas intensa relação de Ney Matogrosso com a nova capital do país.
Tudo isso e muito mais pode ser conferido na ótima biografia de uma das vozes mais marcantes e inconfundíveis da música brasileira. Fruto de cinco anos de trabalho, muitas entrevistas, viagens tantas e pesquisa fundamental, Ney Matogrosso – A Biografia (Cia das Letras, R$ 89,90), traz à tona, com envolvente narrativa, as agruras e vicissitude de um “sujeito estranho”, sincero, libertário, visionário e de coragem singular que revolucionou a música brasileira com seu estilo bem original de ser e cantar.
“Quis mergulhar na vida do Ney. Acho-o um dos poucos artistas brasileiros que se abre para as biografias. Vi o Ney como uma possibilidade rara de abertura de si mesmo”, conta o repórter e crítico musical, Julia Maria, autor do livro, em entrevista ao Metrópoles. “O meu desafio era ir respirar o oxigênio do Ney Matogrosso tantos anos depois”, continua.
Ney Matogrosso – A Biografia não é o primeiro livro a se debruçar sobre a trajetória e vida do artista. Antes, já tinham sido publicados Ney Matogrosso – Um Cara Muito Estranho (1992), de Denise Pires Vaz; e Vira-lata de Raça: Memórias, organizado por Ramon Nunes Mello. E, claro, Primavera nos Dentes, a formidável biografia dos Secos & Molhados, de Miguel de Almeida, lançada em 2019. Contudo, o novo projeto vai surpreender leitores e fãs. Além das preciosas entrevistas e pesquisa minuciosa, o projeto contou com o acervo pessoal de Ney, como cartas trocadas com Elis Regina e bilhetes de Cazuza, uma das grandes paixões do artista.
“São coisas incríveis que ele nunca tinha mostrado”, revela Julio Maria, também autor da biografia de Elis Regina. “Não consigo ver muitos artistas brasileiros capazes de entender o trabalho do biógrafo com a mesma liberdade de que o Ney entendeu”, agradece o jornalista.
Aos 80 anos, com corpinho sexy de 50 e cabeça de muitas gerações, o artista tem muito a dizer. Ney é daqueles nomes que a figura do homem, do ser humano, enfim, do brasileiro em si, se funde como o grande artista que ele forjou em anos de transpiração e inspiração. “O Ney musical também precisa ser tão entendido e valorizado quanto o Ney ser humano”, avalia Julia Maria. “A mesma quebra de barreira, a mesma falta de fronteira que ele tem no gênero humano, sexualmente e no amor, você vai observar na música. Não escrevo sobre isso no livro, mas pensar e falar sobre o livro me fez entender isso”, diz.
Nascido em Bela Vista, cidade do Matogrosso do Sul limítrofe com as fronteiras do Paraguai, desde muito cedo o menino Ney, que foi gerado numa pensão da Praça da Sé, em São Paulo, como ele mesmo gosta de dizer, aprendeu o que queria da vida e o mais importante, dela se defender. As rixas e dissabores com o pai autoritário e intolerante eram frequentes. “Matto Grosso ainda acaba com esse menino”, ciciou certa vez, um dos vizinhos de base militar em Campo Grande, ao ver o guri de cinco anos num no jardim de casa, tampando as vergonhas com terra. “Não quero filho viado”, esbravejava o pai.
As parcerias no teatro com Regina Duarte e Lucélia Santos, em tempos de vacas magras, a meteórica escalada no fenômeno Secos & Molhados, no início dos anos 1970, o desafio da carreira solo, o namorico com a cantora Simone, as paixões explosivas ao lado de Cazuza e do médico Marco de Maria, as perdas em tempos de AIDS, enfim, como o artista fez uso de seu corpo e voz singular para lutar contra o preconceito e a intolerância, mesmo que de seu jeito bem particular, não como ativista, mas apenas sendo o que é.
Amor, sexo e aventuras no cerrado
Descendente de índios das reservas paraguaias de Chaco, o sobrenome artístico topográfico que escolheria, no início dos anos 70, numa roda de amigos hippies, remete às origens da família paterna. A ideia foi do avô Fausto Ismael que, nascido em Paraty (RJ), mas radicado há anos na região do Pantanal, homenageou a terra que o acolheu colocando o sobrenome “Matto Grosso”, com dois “tt” nos filhos homens. Entre eles, o pai de Ney, o militar, Antonio Matto Grosso Pereira. O artista assimilaria a identidade visceralmente.
“Por alguma razão, Ney sentiu que poderia fazer as pessoas olharem para o outro Brasil. (…) Matogrosso representava não um nome, mas um estado de coisas. Era selvagem, indígena e místico, algo que poderia defini-lo e explicar sua facilidade de abrir portas para tudo o que não parecesse ser deste mundo”, escreve o autor nos primeiros capítulos.
Brasília teve uma importância enorme na vida de Ney Matogrosso. Foi no coração do Brasil que ele começou sua carreira artística, flertando com o teatro e canto lírico, inclusive, participando de coral do colégio Elefante Branco. Em busca do “patrão nosso de cada dia”, flanou como cantor de música popular pelos bares e night clubs da cidade. “Talvez o único lugar de verdade onde o Ney cantou ao vivo, no esquema barzinho, voz e violão, foi aí em Brasília”, arrisca Julio Maria.
Também foi na capital do país que Ney se abriu para as primeiras experiências sensoriais e amorosas, como aventuras com drogas e amores intensos, um deles, com desfecho fatal. Certa noite, quando cantava no La Cave des Rois, localizado na Superquadra 212, esbarrou com o ator Leonardo Villar, com quem teve rápido flerte. Consagrado pelo estrondoso sucesso de O Pagador de Promessas (1962), Villar se encontrava na cidade, junto com a atriz Leina Krespi, para gravar as últimas cenas do filme Amor e Desamor, do carioca Gerson Tavares, que seria o primeiro longa de ficção rodada na capital. Sonhando em ser ator, e não cantor, foi alertado pelo ator. “Não lute contra isso, Ney, você é um cantor”, disse sabiamente. Sorte a nossa…