Autobiografia de Lucio Costa é reeditada: aqui, só na banca da 308 Sul
Livro raríssimo passou 21 anos sob status de relíquia até esta nova tiragem: registros sobre Brasília e outros trabalhos
atualizado
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Durante a última semana, a jornalista e jornaleira Conceição Freitas teve o maior engajamento jamais visto em um post de sua página pessoal no Facebook. Não é para menos: ao anunciar a chegada da autobiografia de Lucio Costa, Registro de uma Vivência, à sua banca na 308 Sul, ela atraiu arquitetos e entusiastas do urbanismo da capital federal, comunidade que orbita o pequeno estabelecimento. Foram 300 reações, mais de 50 comentários e, para a surpresa da jornalista, 20 compartilhamentos em cinco dias.
O livro foi lançado em 1995 e reeditado dois anos depois. Desde então, esse precioso registro sobre a arquitetura brasileira do século 20 adquiriu status de relíquia, dado, entre outros fatores, o peso do material: cada livro tem mais de dois quilos, cheios de gravuras, croquis e fotografias. Na internet, é possível encontrar volumes antigos por valores salgados, começando em R$ 450. A nova edição gira em torno de R$ 150, a depender da livraria.
Conceição sabia que o livro seria lançado novamente em novembro deste ano e aproveitou uma ida a São Paulo para visitar o filho – Juliano é estudante de engenharia em Bauru, no interior paulista – para trazer alguns exemplares a Brasília. A dupla alugou um apartamento de temporada na selva de pedra e se deparou, na portaria, com caixas e mais caixas dos exemplares encomendados pela jornalista. Ao todo eram 30 volumes, trazidos na viagem de 14 horas de ônibus até a capital federal.
Em Brasília, por enquanto, o livro só pode ser encontrado na banca da Conceição. Aos que temem o fim do estoque, a jornaleira garante: em breve deve receber mais exemplares. “O Brasil e Brasília ainda devem reconhecimento a Lucio. Claro que Oscar dedicou anos da vida dele à capital, mas o senso comum diz que Brasília é só dele. Isso não é verdade. Existem poucos livros sobre a obra de Lucio Costa, e como esse estava esgotado em todo país, gerou interesse”, afirma a jornalista, que em 24 horas vendeu 12 exemplares.
Conceição afirma, sem medo de errar, que este é o livro mais importante do acervo de sua banca. “Neste momento sombrio em que vivemos, precisamos nos agarrar à nossa herança. Lucio Costa é um dos intelectuais mais importantes do século 20. Ele falava de tudo na área de artes e cultura, e o texto dele é uma delícia de ler”, comenta.
Trabalhando com jornalismo e patrimônio histórico há décadas, Conceição entrevistou Niemeyer em algumas ocasiões, mas é com Costa, a quem só viu uma única vez, que ela sente maior conexão. Quando ainda era repórter iniciante e sem nenhum conhecimento sobre arquitetura, foi enviada, de última hora, para cobrir uma honraria onde o urbanista estaria presente. “Cheguei atrasada, o vi descendo a rampa do Buriti e não tive coragem de abordá-lo. Voltei para a redação do jornal e disse que ele já tinha ido embora”, lembra a jornalista.
Em 2009, quando Niemeyer quis fazer a Praça da Soberania, um chifre no meio da Esplanada, foi uma polêmica enorme, a cidade toda protestou contra. À época, eu escrevia crônicas diárias, e resolvi fazer uma carta de Lucio Costa a ele, explicando por que aquilo não podia. Recorri ao Registro de uma Vivência para procurar algo e abri, sem querer, bem na página de um texto dele dando respaldo ao meu argumento. Foi algo muito forte para mim
Conceição Freitas, jornalista e proprietária da banca da 308 Sul
Coincidência ou não, a história é lembrada pela jornalista com assombro nos olhos. Apaixonada por urbanismo, ela garante que, apesar da parte acadêmica da autobiografia ser um pouco difícil de ler, este é um livro para quem se interessa pelo assunto, e não necessariamente para arquitetos. “Para quem tem curiosidade quanto ao pensamento moderno do Brasil, saindo do modelo colonizado, este livro é fundamental. Lucio escrevia bem para caralho”, elogia.
Nem só de arquitetura, no entanto, se faz a obra: os relatos pessoais são um agrado à parte. Conceição lembra de um dilema da juventude do arquiteto, que, aos 20 e poucos anos, se apaixonou por duas primas. “Não sabia com quem se casaria e foi para a Europa colocar a cabeça no lugar. O livro tem esse relato bem discretamente, quando ele fala, em uma carta, sobre o tempo que passou lá”, conta. Da coleção de soldadinhos de chumbo na infância à conturbada relação com Le Corbusier, a obra é um relato eclético.
Publicação aguardada
O aguardado retorno do livro às prateleiras do país não veio sem esforço. Depois de 20 anos de hiato, a filha do urbanista, a arquiteta Maria Elisa Costa conseguiu encontrar alguém que aceitasse reeditar uma obra tão complexa e volumosa: Milton Ohata, da editora 34. “O livro estava esgotado há muito tempo e na internet chegava a custar R$ 1 mil. Era uma evidência de seu significado. Mantivemos o projeto gráfico original, mas agregamos a ele uma apresentação da Maria Elisa sobre o making of da primeira edição e um posfácio da Sophia Telles, que é, acho, o texto que melhor compreendeu o que é esse livro”, adianta o editor.
Ohata concorda com Conceição em relação ao público-alvo do livro. Para ele, o tema é importante e interessante a qualquer leitor, mas o uso do nosso idioma materno pelo autor é seu maior trunfo. “A prosa dele tem uma qualidade expressiva que só os grandes escritores têm. As frases são muitas vezes longas, justamente para dar conta de raciocínios complexos, mas o leitor se delicia com o uso elegante que ele faz da língua portuguesa, ao mesmo tempo com muita naturalidade”, descreve.
Registro de uma Vivência, de Lucio Costa
Editora 34 e Edições Sesc SP, R$ 150, 656 páginas