Humor tem limite? Assunto voltou à tona após decisão judicial: entenda
Decisão que proibiu Léo Lins de fazer piadas com minorias gerou debates acalorados sobre censura, liberdade de expressão e discursos de ódio
atualizado
Compartilhar notícia
Um debate que sempre volta à tona nas redes sociais é o limite do humor. Nos últimos dias, o assunto dominou as discussões na web por causa de uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinando a exclusão de um especial de comédia de Léo Lins. A justificativa: a existência de piadas discriminatórias, envolvendo escravidão, perseguição religiosa, minorias, pessoas idosas e com deficiências.
Atendendo a um pedido do Ministério Público de São Paulo, a determinação ainda estabelece que o humorista se abstenha de fazer piadas com “comentários odiosos contra minorias e grupos vulneráveis”. Léo também está proibido de deixar a cidade de São Paulo, onde vive, por mais de 10 dias.
A sentença, sobretudo a parte que proíbe Léo de fazer certas anedotas, dividiu opiniões, incluindo os da classe artística. Fábio Porchat, um dos primeiros a se pronunciar, demonstrou indignação com a resolução jurídica, e recebeu uma enxurrada de críticas, assim como Antônio Tabet e Fábio de Luca, ambos do Porta dos Fundos.
Ao longo da semana, o Metrópoles conversou com comediantes e ativistas para entender por que há tanta controvérsia em torno do assunto.
Discurso de ódio Vs. Liberdade de Expressão
Ao justificar seu posicionamento polêmico, Fábio Porchat afirmou que “não existe censura do bem”. A fala resume o receio de parte da classe artística acerca dos precedentes que a decisão judicial, que teve Léo Lins como alvo, pode abrir em outras circunstâncias.
“Essa questão é muito simples e muito complicada ao mesmo tempo. Ela é muito simples porque um crime foi cometido. E, quando um crime é cometido, a pessoa tem que ser punida. Mas ela é muito complicada porque a forma como foi embalado esse crime é uma forma artística, e aí a classe toda tem se colocado em alerta”, explica a comediante Babu Carreira.
A humorista acredita que as piadas retiradas do ar são, independente do contexto, criminosas, mas explica a apreensão dos colegas.
“É em relação a artistas progressistas, que tocam em temas delicados, como eu, por exemplo. Sou uma mulher gorda, bissexual, que falo de estereótipos de pessoas gordas e bissexuais para, justamente, expor o ridículo deles por meio da comédia”, explica.
“Não é simplesmente se a gente concorda com o cara [Léo Lins] não — eu absolutamente não concordo. Acho que liberdade de expressão esbarra sim no crime e deve ser punido. A questão é como os casos vão ser avaliados”, salienta Babu.
“Censura é a retirada arbitrária de conteúdos. Nesse caso não tem nada de arbitrário. É um crime embalado em uma piada. Eu acho realmente que tem muitos humoristas que se utilizam do palco para para difundir ideias irresponsáveis”, complementa.
“Noção e empatia”
Um dos humoristas de maior destaque da cena atual, Lindsay Paulino concorda com Babu sobre a complexidade do tema. “Eu acho essa discussão muito difícil. Esperar uma mediação da Justiça, também não sei. Sabemos que ela é lenta. Seria tudo mais fácil se as pessoas tivessem noção e empatia”, opina.
Gay assumido e campeão do reality show de humor LOL Brasil, da Amazon Prime, Lindsay Paulino avalia que anedotas “racistas, machistas, LGBTfóbicas, gordofóbicas e preconceituosas” precisam ser punidas como prevê a legislação brasileira. “Pessoas morrem justamente pelo que essas ‘piadinhas’ inofensivas reforçam. Isso não tem nada a ver com censura, é seguir a lei”, pondera.
Apesar de não considerar a liberdade de expressão absoluta, o artista destaca que é preciso garantir o direito à crítica social. “Eu costumava dizer que o limite do humor é quando a piada fere a pessoa de alguma forma. Se no meu show alguém me diz que se sentiu mal ou ofendido por alguma piada, eu corto na hora. Não penso duas vezes. Pra mim, é mais importante quem me assiste e não a piada”, explica.
Lindsay Paulino
“Hoje eu penso que o limite não é exatamente quando alguém se sente ofendido. Porque se você faz uma piada criticando a Igreja Católica, por exemplo, alguns cristãos podem se sentir ofendidos, mas a piada é uma crítica à instituição e não uma ofensa aos fiéis. O papel do teatro, em específico da comédia que é o que eu faço, também é esse: criticar. Mas eu aponto o ridículo no opressor e não no oprimido.”
Lindsay ainda sugere uma leitura sobre o assunto, Racismo Recreativo do Adilson Moreira da coleção Feminismos Plurais. “Um ótimo livro para entendermos o quanto essas ‘piadinhas inofensivas’ reforçam preconceitos que ainda matam”.
“Parece simples, mas é não é”.
Artista de stand-up comedy há 20 anos e professor de comédia há 10 anos, Fábio Lins também é taxativo ao condenar piadas discriminatórias. Ele destaca que a dúvida sobre os limites do humor é uma das mais frequentes nos cursos que ministra. “Comédia é essa coisa que parece simples mas é super complexa”, frisa.
Ele explica que as fronteiras do humor são diferentes em cada sociedade, mas que no Brasil elas, geralmente, estão na lei. “Se por exemplo, tiver alguma piada que só está normalizando uma ideia racista e não está questionando o racismo ou não está denunciando essa prática, essa piada além de ser uma piada, também é racismo. E racismo é crime”.
O mesmo vale para piadas transfóbicas, por exemplo. “É humor para algumas pessoas. Mas também é crime. As duas coisas ao mesmo tempo”.
Dá pra fazer humor sem discriminar
Em meio à turbulenta discussão iniciada no Twitter de Fábio Porchat, após a crítica à decisão judicial contra Léo Lins, a mestranda em Educação e pedagoga Ana Flor se colocou à disposição do apresentador para ajudá-lo a “construir diálogos legais sobre os processos que envolvem o humor como uma caixa de ferramenta de riso e não de produção da violência”.
“Não é para ensinar, é para aprender juntos”, destacou. Esse é o trabalho que ela faz junto a Tatá Werneck no Lady Night. “Qualquer trabalho pressupõe uma ética. Não existe um modelo, uma fórmula. O que existe são possibilidades. Escolher não violentar grupos historicamente oprimidos é uma dessas possibilidades. Não é sobre dizer sim ou não, mas sobre as escolhas que podemos fazer. Tatá é uma pessoa muito legal. Trabalhamos juntas, aprendendo juntas. Não é uma via de mão única”, esclareceu.
Primeira travesti formada em pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco, diz que suas ponderações partem de um pensamento crítico e pedagógico.
“Eu não acredito que o objetivo do humor seja ofender. Contudo, é possível visualizar que no Brasil muitos humoristas fazem essa escolha. Se vivemos em um país repleto de desigualdades e violências, muita gente acredita que é mais engraçado fazer piadas violentas com gays, mulheres trans, pessoas negras, pessoas com deficiência e pessoas gordas. Todavia, existe uma linha tênue entre o engraçado e violento quando estamos falando sobre humor”, avalia.
Combate ao preconceito não é censura
A opinião de Luã Andrade, fundador da página e do canal Escurecendo Fatos, vai no mesmo sentido. “Piadas que atingem minorias reforçam vários estereótipos e colaboram com a perpetuação, por exemplo, com racismo recreativo, transfobia recreativa, entre outras coisas. É muito ilusório supor que uma ofensa em forma de piada irá ficar apenas do ambiente do show”.
Ele também ressalta que dá para fazer piada falando da questão racial sem atentar aos direitos humanos.” Existem vários humoristas que fazem isso, como a Niny Magalhães, Bruna Braga, João Pimenta, Paulo Vieira. O que não dá é ver pessoas capitalizando fazendo chacota com a dor do outro, esse para mim é o limite, sabe? Brincar com o que condena milhões de pessoas diariamente não é aceitável, pelo menos para mim”.
Luã Andrade, fundador do Escurecendo Fatos
Para o ativista, não há como confundir a censura com o combate ao racismo, capacitismo, transfobia, eterismo e etc. “Pelo contrário. Acho que é um passo que damos em direção a uma sociedade que respeita seus cidadãos. Chamar de censura sanções a um comediante que teve falas racistas, e não pela primeira vez, é um alarmismo pelo direito de ofender. Usar essa palavra no Brasil, um pais que já teve uma real reprimenda, me parece uma tentativa de criar um pânico moral”, opinou.