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Fernanda Montenegro: “Não me envolvo com política, mas com cidadania”

Em entrevista exclusiva, a atriz fala sobre corrupção, o papel da arte na formação educacional e relembra sete décadas de carreira

atualizado

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Silvio Pozzato/Divulgação
fernanda montenegro
1 de 1 fernanda montenegro - Foto: Silvio Pozzato/Divulgação

Avessa a controvérsias, principalmente no que diz respeito ao cenário político, a atriz Fernanda Montenegro sempre preferiu se expressar por meio e em prol do ofício, mas nada que a defina como uma figura mais reservada sobre questões essenciais ao país. Muito pelo contrário. “Eu não me envolvo com política. Eu me envolvo com a cidadania. Entendeu? Não dá para se envolver com política”, comenta a artista, durante entrevista exclusiva concedida ao Metrópoles em São Paulo, por ocasião do recém-lançado Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico, da Edições Sesc (ela desembarca em Brasília nesta terça-feira, 20 de novembro, para o lançamento do material na capital federal).

Credito: Gabriel Foster

Embora prefira a informalidade, a atriz, de 89 anos, sobe o tom e a seriedade ao criticar o papel coadjuvante da arte e da cultura na gestão governamental, sem esquecer as demais pastas, igualmente negligenciadas, aos olhos dela: “A arte, apesar de chutada, ela é inarredável. É própria razão de ser de cada um de nós no seu espaço, na sua sobrevivência, no seu gosto de vida. O que não há é uma atenção. Mas não é só com a cultura, não! Com a educação também, com a saúde… É um desmonte total do real cuidado com o cidadão e [com] o retorno de toda uma tributação que cada um de nós entrega para o governo”. Não à toa, ela costuma repetir uma máxima ao ser abordada sobre assuntos políticos, “não sou ativista, sou atuante”.

Nessa seara, a reportagem relembrou Fernanda sobre uma carta que ela enviou ao diretor e dramaturgo carioca Augusto Boal em 1984, na qual diz: “Ninguém aguenta mais tanta corrupção e repressão”. Questionada sobre a atualidade, a veterana – sem se dirigir a partidos ou figuras políticas – não hesita: “Eu acho que agora está institucionalizado. É normal, entendeu? É como se fosse um país colonizando o Brasil. Formou-se um país colonizador, com essa visão corrupta e que, sem atravessar o Oceano Atlântico, chupa o sangue de 200 milhões de habitantes”.

Credito: Gabriel Foster

Em determinado trecho de Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico, inclusive, a filha Fernanda Torres escreve: “É curioso que alguém que nunca foi de esquerda ou de direita, que recusou um cargo político, que não tomou ácido na hora que era pra tomar, que fez comédia de costume quando a regra eram textos políticos, ou seja, que nunca esteve na moda, […] tenha se transformado numa espécie de exemplo de cidadã”. A menção desse depoimento da filha, durante a entrevista, rendeu réplica complementar da mãe: “Eu sempre fui tudo isso e até mais um pouco. Agora, sem tambores. Aqui, na minha vidinha, sou tudo isso e com muito orgulho. Mas sem fanfarras”.

A Fernanda que se apresenta ao repórter está muito mais ligada ao subúrbio carioca, onde nasceu, do que à atriz indicada ao Oscar, indicada ao Globo de Ouro e vencedora do Urso de Prata. Aliás, lá se vão 20 anos desde o lançamento do filme Central do Brasil, em 1998, que acabou por alçá-la aos olhos de uma plateia mundial, embora ela já fosse por aqui dona de uma carreira insuperável.

Credito: Gabriel Foster

Ainda assim, ela não faz questão de título algum e dispensa os rótulos de “maior nome da dramaturgia brasileira”, “grande dama do teatro”, “única atriz brasileira indicada ao Oscar” e todos esses “tombamentos”, como ela própria brinca. “Cinco minutos de conversa comigo e isso aí tudo vai por água abaixo”, diz. Adepta de encontros descontraídos, a reunião com Fernanda começa com um aquecimento de voz típico do teatro e boas risadas, capazes de quebrar qualquer protocolo.

O grandioso compêndio de textos e fotos Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico, principal registro de memória dos mais de 70 anos de vida pública da artista, traz em suas 500 páginas uma lista de trabalhos que compreende 59 peças, 29 filmes, 88 teleteatros e 37 novelas e séries, os quais a tornaram a mais prestigiada e celebrada atriz brasileira, mesmo que ela rejeite a epígrafe.

Por meio de cada um desses trabalhos, “dona Fernanda” (como costuma ser chamada nos bastidores) costurou as mais diversas nuances da vida brasileira: da comicidade do dia a dia e crônicas mundanas à densidade de um povo amargado pela miséria e corrupção, a exemplo da professora Dora, protagonista de Central do Brasil.

Memórias
“São os subúrbios que fazem a cidade. O erro é quem está acima achar que o subúrbio não seja a verdadeira alma do brasileiro. Vai lá, que ali que tá”. Palavras de quem cresceu na Zona Norte carioca, no bairro do Campinho. Arlette Pinheiro, nascida em 1929, assumiu o nome artístico Fernanda Montenegro anos depois, quando encarou o trabalho em uma rádio, ainda na juventude. Foi no meio radiofônico que Fernanda diz ter cursado “a sua primeira faculdade da vida”, vide os aprendizados e exigências do ofício.

Credito: Francisco Cepeda

A estreia na televisão viria tempos depois, nos anos 1950. Naquela década, também se casaria com o grande parceiro e amor de uma vida inteira, Fernando Torres, falecido em 2008. “Não foram apenas os 60 anos juntos, sabe? Foi uma comunhão de vida, uma comunhão fundamental. Sem ele, eu não seria eu”, diz emocionada, ao relembrar o marido. Até das perdas, Fernanda tirou importantes lições, e nos ensina que não precisamos tornar as ausências “uma coisa mórbida”, apesar da saudade: “Não há consolo pra perda de amores, pra perda de convívios, perda… A gente se conforma com perda até da saúde. Mas, quando um ser que a gente respeita e ama vai embora, a gente […] tá tudo bem, vai, acorda, faz a vida […], mas aquele lugar tá vago”.

No teatro, cinema e televisão, viveu, celebrou e imortalizou figuras que ainda permeiam o imaginário de tantos brasileiros, a exemplo de Simone de Beauvoir (Viver Sem Tempos Mortos, 2010), Gilda (1993), Charlô (Guerra dos Sexos, 1983), Naná (Cambalacho, 1986), Vó Manuela (Riacho Doce, 1990), Bia Falcão (Belíssima, 2005), a advogada Tereza (Babilônia, 2015, na qual vive uma relação homoafetiva com a personagem de Nathalia Timberg) ou ainda a icônica Dora, de Central do Brasil (1998), e a simpática Dona Picucha, de Doce de Mãe (2013), papel pelo qual se tornou a primeira brasileira a receber o Emmy Internacional na categoria Melhor Atriz. “Nunca parei de trabalhar. Uma coisa atrás da outra, uma coisa atrás da outra. Às vezes, três coisas juntas, né? Cinema, teatro, televisão. Já fiz cinema, teatro, televisão juntos! Não sei como”, rememora.

Credito: Francisco Cepeda

A memória, inclusive, talvez seja o bem mais sagrado que Fernanda carregue: “Somos nós a memória. A gente sem memória não é a gente, não é? Mesmo as ruins, até com elas, não é? Mas, se você não tem memória, você não tem, não existe”.

Ao fim da entrevista, todos – fotógrafos, produção, funcionários do local – acompanham atentos cada palavra de Fernanda, principalmente quando ela fala sobre projetos futuros. “Quem sabe, né? Eu estou aqui! Sem fugir, pelo contrário, batendo papo”, encerra a atriz, sempre rodeada por uma aura de respeito e admiração, embora ela insista em um tratamento coloquial. Dos mais árduos desafios.

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