João Angelini vira a pintura do avesso e explora as fronteiras do vídeo
Membro do festejado coletivo EmpreZa, o artista brasiliense explora diferentes linguagens e leva seu trabalho individual para duas mostras em galerias da cidade
atualizado
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João Angelini se multiplica em muitos. Neste exato momento, ele tem duas mostras individuais em dois dos mais quentes espaços para a arte contemporânea do Distrito Federal. “Entre-Quadros” já está entrando nos últimos dias na Alfinete Galeria e “A Seco” está abrindo na Referência Galeria de Arte. Ambas dão conta da produção recente de um dos mais versáteis e multifacetados artistas da cidade.
Afinal, além de seu trabalho individual, Angelini é membro do coletivo EmpreZa. Voltado a performances, o grupo teve uma temporada bastante agitada. Venceu o prêmio Marcantônio Villaça de Arte Contemporânea. Atravessou quatro meses de pesquisas ao lado da sérvia Marina Abramovic. E foi confirmado com um dos participantes da festa de 100 anos do movimento surrealista no Cabaret Voltaire, em Zurique, no ano que vem.
Com a demanda do EmpreZa só fazendo aumentar, Angelini precisa buscar brechas na agenda para poder realizar os trabalhos particulares. Brechas na agenda e/ou formas de financiamento que surjam como oportunidade de expandir seus interesses.
“Entre-Quadros”, na Alfinete até o sábado (19/12), apresenta meia-dúzia de instalações e objetos em que ele parte de seu interesse em vídeo e em animação para explorar os limites dessas linguagens. Foram realizados nos últimos dois anos, graças a bolsa do projeto “Novos Rumos” do Itaú Cultural.
“A Seco”, que abriu sábado (12/12) na Referência, reúne pinturas e gravuras feitas esporadicamente ao longo dos últimos anos, entre os compromissos com o EmpreZa e com o Itaú Cultural.
Superfície e cor
Quando ainda morava na casa de seus pais, em Planaltina, João Angelini ia recolhendo azulejos e lascas de tinta que se soltavam das paredes. Daí passou a adotar expediente semelhante, em exercícios sobre placas de gesso, investigando como entalhar camadas de tinta, subtraindo cores e, nesse processo, formar figuras e narrativas.
“Não sei se devo chamar isto propriamente de pintura”, admite João Angelini, uma vez que estes trabalhos reunidos na Referência são o avesso de um procedimento tradicional de pintura. Em vez de pegar uma tela branca e lançar camadas de tinta sobre ela, o artista aqui apanhou placas de gesso acartonado, de diferentes tamanhos, usados para aquele revestimento que na arquitetura se chama dry wall, e submeteu cada uma delas a camadas uniformes de diferentes cores.
Com um bisturi, e não com pinceis, com um bisturi de médico, Angelini vai raspando cada uma dessas finíssimas camadas de tinta, num trabalho de paciência e persistência, delicadeza e concentração, para formar os desenhos que busca. Desenhos que, nessas placas de gesso, foram gentilmente apropriados do médico e ilustrador alemão Johannes Sobotta (1869-1945), perito em anatomia humana e consagrado autor de livros de medicina.
O pai e o irmão de João Angelini são médicos – vai daí o garoto Angelini sempre foi fascinado pelos manuais de medicina. Esta série de “pinturas” não apenas traz um caráter biográfico para o artista como serviu para ele escoar um imaginário há muito armazenado.
Os desenhos dessas peças, assim como os desenhos dos livros de Sobotta, são completados por um texto científico a explicar e pormenorizar as funções de cada órgão retratado. Para fazer seus textos, João Angelini recorreu ao pai e ao irmão. Juntos bolaram uma espécie de medicina fantástica, surreal, que se utiliza do jargão médico e de todas as minúcias do vocabulário científico para detalhar condições e procedimentos impossíveis.
Completando esta série, surgiu no calor do momento uma peça site specific que o artista está fazendo ali mesmo na Referência durante o transcorrer da exposição. Ao visitar a galeria da 206 Norte, ele percebeu que uma das paredes da sala de exposições era – justamente – um gesso dry wall. Pediu licença para a marchand Onice Moraes e vem se dedicando, bisturi na mão, a fustigar as camadas de tinta ali pintadas e repintadas, umas sobre as outras, para cada uma das mostras que a casa abrigou.
Quando “A Seco” terminar, no dia 16 de janeiro, uma serra maquita corta a parede e leva embora, como um quadro, a obra ali realizada.
Tempo e movimento
Professor da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, João Angelini fez um acordo peculiar com seus patrões. Ele troca sua força de trabalho por um ateliê no quinto andar da instituição, no coração do Conic, e pelo financiamento do curso de Raimundo, seu aprendiz.
O ateliê de Angelini é uma sala ampla, bem iluminada, bem ventilada e um tanto bagunçada. Carcaças de monitores de televisão, largadas no alto de uma empoeirada prateleira metálica, e centenas de cones do Detran, serrados milimetricamente de diferentes maneiras, são os restos deixados por ali de algumas das obras em vídeo que foram parar na Alfinete Galeria.
“Tenho uma cabeça que separa as minhas linhas de produção”, explica João Angelini, garantindo que a confusão à sua volta é apenas aparente, um caos sob controle. “Existe uma convergência na maneira como penso e construo a obra, mas são focos e suportes e resultados completamente diferentes.”
Se os trabalhos na Referência são uma investigação da pintura e trazem um lastro biográfico, na Alfinete se vê um estudo de outra ordem. “Ali entra um barato com a questão temporal e com a representação do movimento. Pois o movimento é o tempo. E a música também entra como um fenômeno temporal, e não apenas sonoro.”
Peça sonora que movimenta e atordoa todo o ambiente, a vídeo-instalação “Maracatu Torto” (2015) desponta na mostra “Entre-Quadros” fazendo uma barulheira que deixa o próprio Angelini doido. Seus três monitores de vídeo reproduzem em imagens de estática as mesmas frequências percussivas da banda sonora. Trata-se de uma versão sintetizada dos tambores de maracatu, herança direta da família pernambucana de João Angelini.
Ali, no ambiente controlado de uma galeria, valendo-se dos recursos do vídeo, ele se permite revisitar uma de suas lembranças mais angustiantes. O carnaval de Olinda, com milhares de foliões nas ruas e um tumulto sonoro vindo de todos os lados, foi uma experiência limite para João Angelini.
“A Seco”. Até 16/1, na Referência Galeria de Arte (205 Norte, Bloco A, Loja 9; 3363-3501). De segunda a sexta, das 12h às 19h; sábado, 12h às 17h. Entrada franca. Livre.
“Entre-Quadros”. Até 19 de dezembro, na Alfinete Galeria (116 Norte, Bloco B, Loja 61; 9981-2295). De quarta a sábado, das 15h às 19h30. Entrada franca. Livre.