Brasiliense Mavi Dutra faz arte a partir dos corpos de grávidas
A artista nunca gerou uma criança, mas retrata o período como forma de homenagear a mãe – e de se assumir na nova profissão
atualizado
Compartilhar notícia
No primeiro olhar, o espectador se confunde. É pintura ou foto? As imagens são poderosas como poucas outras: mulheres com a gravidez avançada, de expressão altiva, orgulhosas de seus corpos em expansão. Ao fundo, um cenário pintado em madeirite rosa-choque varia a cada modelo, com um elemento constante na composição. O halo que emoldura a cabeça delas torna essas personagens sagradas a sua maneira. Como deusas da fertilidade.
“Uma mulher grávida está mais perto da espiritualidade, da transcendência, do que qualquer outro ser humano vivo”, define a artista plástica por trás do projeto, Mavi Dutra. O projeto começou em comunidade: antropóloga por formação, ela havia feito algumas pinturas corporais quando uma amiga pediu, em 2015, um retrato daquela maneira de sua gestação. “Eu não tinha formulado a ideia para o corpo grávido até porque não tinha essa ousadia, né?”, brinca.
O processo, de fato, é lindo de assistir. Mavi deixa o painel de madeirite quase pronto: os últimos detalhes são acertados com a gestante minutos antes de iniciar a pintura no corpo. Em seguida, a mulher se despe, inicialmente, de suas roupas e tatuagens. A artista dá as primeiras – e geladas – pinceladas nas costas da musa. Barriga, seios, braços, pernas e, por fim, rosto são cobertos com tinta.
A gestante, sem saber como está a própria aparência, mostra-se progressivamente mais segura de si. Uma vez humana de carne e osso, torna-se pintura, ideia, divindade. Como se algo escondido ali dentro finalmente se sentisse à vontade para ser mostrado. O momento da foto quase não tem direção: a pose já havia sido combinada entre as duas, trata-se apenas da artista e da modelo resolverem como ficarão a cabeça e a expressão no retrato.
“A técnica é justamente a ausência dela. É muito brincante, festivo e intuitivo”, descreve a artista. Mavi cresceu em uma casa em constante construção e reforma, por isso a escolha da madeirite como tela inicial. “Desde que me entendo por gente, estou coberta de tinta. Sempre tive à mão materiais simples. Toda vez que vejo uma obra cercada por esses tapumes, é uma instalação artística para mim”, reflete.
O parto da artista
Fascinada com a imagem da mulher grávida, Mavi nunca gestou. “Sempre foi uma fase da vida da mulher que me interessou, e eu associava isso à vontade de ser mãe. A trajetória da gravidez desenvolveu meu processo criativo. Para mim, a metáfora é direta, no fato de eu me representar criativamente nesse projeto”, explica a brasiliense. Para se assumir como artista, Mavi precisou trabalhar com mulheres grávidas: pariu sua própria carreira.
A relação íntima da artista com a gestação não para aí – ou, ao menos, começa quase três décadas atrás. Refletindo sobre a gravidez da mãe, ela entendeu seu fascínio com esse período de vida. Quando Mavi estava sendo gerada, seus avós maternos morreram em um acidente de carro.
Esse sentimento de orfandade que minha mãe enfrentou enquanto me gestava talvez seja algo que eu carrego, na leveza, porque ela sempre falou disso com muita tranquilidade. Ela sempre disse que, quando eu nasci, representei festa para a família
Mavi Dutra
Nudez poderosa
Quando o Metrópoles visitou o ateliê de Mavi, a grávida retratada foi a designer de interiores Júlia Barbosa. À época com 7 meses de gestação, ela aguardava serena pela chegada de Maitê, prevista para o final de setembro. “Ver a foto é empoderador. Me senti maravilhosa. Foi emocionante”, reflete.
Para Mavi, a alegria das retratadas com seu trabalho representa a parte mais gratificante desse projeto. “Esse momento da gravidez é um lugar muito contraditório para a autoestima. Mulheres grávidas não se sentem bonitas. Embora eu tenha essa imagem romantizada sobre elas, muitas vezes trata-se de um processo sobre dor. Tenho essa relação de devoção ao corpo grávido, é minha maneira de honrar minha mãe”, avalia.
Destino final
Mavi chama seu trabalho de “processo artístico”. Não cobra pelos retratos, sequer pelo custo dos materiais utilizados. Tampouco pretende, a princípio, expor as fotografias em galerias. Mas o meio digital – sua conta no Instagram – não era suficiente para essa millenial que, curiosamente, é pouco afeita a tecnologia.
A solução veio em formato de papel barato e cola de farinha: Mavi começou a colar sua arte em formato de lambe-lambe nas paredes da cidade. “Me realizo assim, porque ser artista de rua é um sonho de infância”, define.