Em crescimento no Brasil, evangélicos ganham roupagem pop no cinema e na TV
Com tramas como Vai na Fé e Nas Ondas da Fé, evangélicos ganham mais representatividade e se firmam como público consumidor de cultura pop
atualizado
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Você provavelmente já esbarrou em algum conteúdo sobre Vai na Fé, novela que ocupa o horário das sete na grade da TV Globo. Não é preciso ser um consumidor assíduo do gênero para saber que a trama de Rosane Svartman fala sobre Sol (Sheron Menezzes), uma mulher evangélica que fez sucesso como dançarina de funk no começo dos anos 2000. A trama é um bom exemplo de como a televisão, e a cultura pop como um todo, tem mudado a forma de retratar os evangélicos.
Com personagens como Sol, os produtos audiovisuais fogem cada vez mais das representações estereotipadas – como as mulheres de saias longas e coques segurando bíblias que costumam dar vida às religiosas – e se dedicam a mostrar um lado diferente desse segmento social. “A comunidade evangélica vem crescendo em número e representatividade e demonstrando seu potencial de consumo. Penso que isso faz a Globo buscar uma aproximação. Além do mais, as novelas da Record provam que esse é um público que gosta e consome o formato”, analisa Priscila Chéquer, professora do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia.
Uma das autoras do artigo Mídia e Religião: Uma Leitura da Representação do Evangélico na Telenovela da Rede Globo, ela avalia ainda que a emissora busca uma conciliação e tenta suavizar a representação que sempre tendeu para um olhar estereotipado. “Destaco a novela Amor à Vida, que já apresentava uma representação dos evangélicos mais gentil, e, agora, temos Vai na Fé”, completa.
Para a autora da trama global, é importante estar com a mente aberta para construir qualquer história. “Mais do que fugir dos estereótipos ou observar outras representações, o que a gente buscou foi conversar, ter escuta para construir personagens que fossem verossímeis e as pessoas pudessem assistir a novela e se reconhecer ali”, explica Rosane. Ela diz ainda que tem recebido um bom retorno do público sobre a novela, mas também buscou feedback dos consultores que a ajudam na criação. Segundo a autora, os “especialistas” definem a abordagem como “respeitosa, atenciosa e positiva”.
Mais retratações de evangélicos
Outro trabalho que segue na mesma linha é o filme Nas Ondas da Fé, lançado em janeiro com Marcelo Adnet como protagonista. Na comédia, ele é um evangélico que aceita todo tipo de trabalho para ter dinheiro suficiente para pagar as contas no fim do mês – uma realidade de grande parte dos cristãos (ou não) brasileiros. No entanto, sua vida muda quando consegue um emprego como locutor de uma rádio evangélica. O longa brinca com o perfil tradicional dessa comunidade e reforça que não existe um padrão para ser um homem de fé.
Quem também vê a vida dar uma volta por causa da fé, mas de outras pessoas, é o protagonista de Santo Maldito, do Star+. Na série, Felipe Camargo vive o professor Reinaldo, que “faz” um milagre e traz a esposa, que estava em estado vegetativo, de volta à vida. Filmado pelo fiel de uma pequena igreja no momento do ato, ele passa a pregar, mesmo sendo alguém que não acredita em Deus: seria ele um milagreiro ou um impostor?
“A necessidade dele de conseguir dinheiro faz com que ele comece a fazer os cultos. Ele começa a se realizar ali porque as pessoas vão mudando as vidas delas e isso cria uma revolução muito grande. Ele não é um ateu em paz, ele fala tanto em Deus que eu acho que ele acredita Nele e nega”, pondera Felipe Camargo.
Outros segmentos
Mas não é apenas nas telinhas que os evangélicos ganham mais espaço e representações diferentes. O universo gospel tem ganhado popularidade e apresentado nomes com propostas um tanto diferentes e cada vez mais voltadas para o público jovem. Exemplo disso é a “pastora mirim” que viralizou nas redes sociais ao usar iPhones e notas de dinheiro amassadas para pregar o evangelho.
Com apenas 17 anos, Vitória Souza vem conquistando seguidores com a simplicidade das falas. Em um dos seus vídeos de maior sucesso, ela amassa uma nota de R$ 100 e oferece a uma irmã da igreja para mostrar que, mesmo não estando em perfeito estado, aquela nota ainda tem valor. No comparativo, ela afirma que Deus olha para as pessoas e enxerga sempre o valor delas.
Uma área mais conhecida em que o público evangélico conta com grande representação é a música. Embora tenha nomes tradicionais como Rosa de Saron e Oficina G3, a área ganha cada vez mais representantes e em estilos variados, como a banda Preto no Branco, que canta letras cristãs no ritmo da black music contemporânea. Mas o crescimento também aparece na literatura.
“Ela começa a emergir também dentro da linha da ficção, porque existia a literatura protestante. Aliás, o protestantismo é a religião do livro, da escrita, se baseia muito na questão do livro, mas numa perspectiva muito devocional. Hoje está ampliando a literatura evangélica de ficção, por exemplo, diria até de auto ajuda, de coaching”, defende Priscila Chéquer.
Representatividade e identificação
A revolução que ganha espaço na cultura pop pode representar uma mudança no perfil dos consumidores de conteúdos, afinal, o Brasil tem assistido, nas últimas décadas, um crescimento de fiéis protestantes. Os evangélicos são 31% da população brasileira, de acordo com dados divulgados pelo Datafolha em 2020. O número equivale a cerca de 65 milhões de pessoas, quantidade bem maior que a divulgada no último censo do IBGE, de 2010, quando os chamados crentes eram 42 milhões de brasileiros.
“Acho que esse aumento de produtos vem muito de uma linha de reapropriação e de uma observação do mercado do crescimento desse público. Há uma estimativa de que [o total de evangélicos] supere o número de católicos no país nos próximos anos. [É um público que] tem crescido muito em representatividade. Nas duas últimas eleições presidenciais têm se discutido muito como o voto evangélico é disputado; e, muitas vezes, até decisivo, por exemplo”, observa Priscila.
Ela, que nasceu e cresceu em uma família evangélica, mas hoje se considera uma cristã sem religião direta, entende que existe uma transformação que a igreja evangélica considera como cultura profana — que está fora do que é a vivência religiosa — em produtos sagrados. “O evangélico vem buscando espaços dentro dessa linha do entretenimento, do prazer, do divertimento. Só que, como ele não pode fazer isso a partir de um divertimento que é considerado profano, ele reapropria.”
“A própria telenovela passa por esse processo de reapropriação, a partir da Record, que leva as releituras do texto bíblico para a televisão. É uma reapropriação da cultura popular para uma perspectiva religiosa”, continua Priscila Chéquer. Ela ressalta ainda que existe uma identificação com esses conteúdos pela forma com que eles são feitos, como é o caso de Vai na Fé.
“Pelas discussões que acompanho, o núcleo religioso se destaca pela humanização das personagens. Com conflitos, dilemas que todos nós enfrentamos mas que, no caso deles, recorrem à fé para superar. Além disso, o núcleo religioso tem vida fora da igreja: trabalham, estudam, têm conflitos narrativos com personagens de outros núcleos, etc. Diria que são evangélicos ‘reais’ e não fanáticos e estereotipados”, pontua.