Como era a Berlim de João Ubaldo Ribeiro
Nos 10 anos da morte do autor de Viva o povo brasileiro e Um brasileiro em Berlim, amigos relembram histórias da estada dele na Alemanha
atualizado
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Numa manhã chuvosa de 1990, o telefone tocou no número 12 da rua Storkwinkel, em Berlim. Do outro lado da linha, um alemão simpático queria saber se João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) estaria livre para uma palestra em 16 de novembro, quarta-feira, às 20h30. “Como alguém pode marcar alguma coisa com tanta antecedência”, pensou o escritor, “esses alemães são uns loucos”.
Pensou, mas não disse. Preferiu recorrer à mulher. “Diga a ele que você responde amanhã”, sugeriu Berenice. “E quando ele telefonar amanhã?”, quis saber Ubaldo, “ele é alemão, ele vai telefonar amanhã”. “Invente uma resposta poética”, prosseguiu a mulher, “diga a ele que a vida é um eterno amanhã”.
O diálogo acima faz parte da crônica Vida organizada, publicada na edição de 20 de outubro de 1990 do jornal alemão Frankfurter Rundschau. Na mesma crônica, João Ubaldo explica que “um alemão que saiba português responderá sem hesitação que a palavra portuguesa ‘amanhã’ quer dizer morgen”. No entanto, quando um brasileiro diz “amanhã”, ele raramente quer dizer morgen. Em português, “amanhã” significa, entre outras coisas, “nunca”, “talvez”, “vou pensar”, “procure outro”… E, em casos excepcionalíssimos, “amanhã” mesmo.
Brasil segundo João Ubaldo: nem Amazônia nem índios
João Ubaldo morou na capital alemã entre abril de 1990 e julho de 1991. Foi a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). “A bolsa era destinada a autores estrangeiros que tivessem livros publicados em alemão”, explica Ana Paula Seerig, mestre em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo (USP), em sua dissertação de mestrado.
No caso de Ubaldo, eram três os livros publicados: Brasilien, Brasilien (Viva o povo brasileiro, de 1984), Der Heilige, der nicht an Gott glaubte (O santo que não Acreditava em Deus, de 1991) e Pandonar (Vida e paixão de Pandonar, o Cruel, de 1983).
“Tenho três cidades na vida: Araraquara, onde nasci; São Paulo, onde vivo, e Berlim, que libertou minha cabeça”, descreve o escritor Ignácio de Loyola Brandão que, a convite do DAAD, viveu na Alemanha entre 1982 e 1983. “Havia de tudo: de sábios a loucos. Viver dentro do Muro foi uma loucura. Gostei tanto que escrevi dois livros: O verde que violentou o Muro, de 1984, e O beijo não vem da boca, de 1985.”
Participar de eventos literários era uma das atribuições dos bolsistas do DAAD. Num desses eventos, Ubaldo ouviu a fatídica pergunta: “Eu li num jornal que o senhor disse que nunca tinha visto um índio?”, perguntou um senhor, com ar de espanto. “Isso é verdade?” “Só apareço outra vez na Alemanha depois de frequentar um curso sobre a Amazônia e ler pelo menos uma bibliografia básica sobre os índios brasileiros”, pensou o palestrante.
Mais uma vez: pensou, mas não disse. Dessa vez, mudou de estratégia: “Claro que não. Isso é mentira de jornal. Jornal mente muito”, respondeu, com um sorriso maroto. “Todo dia eu vejo índios. Quando eu era menino, os índios costumavam sair da selva do outro lado da rua e pulavam o muro do nosso quintal para flechar as galinhas”.
Noutra ocasião, Ubaldo caiu na besteira de dizer que nunca tinha visto a Amazônia. “A destruição já se estendeu a tal ponto que não deu para ele ver mais nada!”, concluiu, perplexo, o interlocutor.
O idioma alemão reduzido a uma palavra
João Ubaldo viajou com dois de seus quatro filhos: Bento e Francisca, do segundo casamento, com Berenice Batella. À época, Bento tinha nove anos e Chica, sete. Emília e Manuela, do primeiro casamento, com Mônica Maria Roters, ficaram no Brasil, mas visitaram o pai na Alemanha. Manuela, aliás, gostou tanto que acabou se mudando: hoje vive em Munique com a família. Antes de embarcar, João e Berenice fizeram um curso intensivo de alemão com um professor particular, Wolfgang Heyder. Não adiantou muita coisa.
“Já leio umas bobagens, mas é só; falar nem pensar”, admitiu para o sobrinho Juva Batella, em carta escrita no dia 2 de setembro de 1990 e publicada no livro Ubaldo – ficção, confissão, disfarce & retrato (Vieira & Lent, 2016). Para compensar a pouca intimidade com o idioma local, andava sempre com um “dicionariozinho” no bolso.
Em pouco tempo, descobriu que “a única palavra absolutamente indispensável na Alemanha” é bitte. “Serve pra tudo, embora seja costumeiramente apresentada apenas como ‘por favor'”, esmiúça na crônica Alemanha para principiantes. “Um bitte bem dado pode quebrar o galho para ‘com licença’, ‘desculpe’, ‘o quê?’…”
E, enquanto isso, O sorriso do lagarto chega à TV
João Ubaldo morava em Berlim quando soube que o romance O sorriso do lagarto, de 1989, seria adaptado para a TV. Por recomendação de Jorge Amado, decidiu não assistir à produção. “Não se meta com esse negócio de adaptação”, aconselhou o padrinho, “isso aborrece muito.” Para piorar, Ubaldo recebeu a ligação de uma repórter do jornal O Globo, perguntando se ele sabia que, logo no primeiro capítulo, uma das personagens morria assassinada.
Quando soube que a tal personagem seria Maria das Mercês, levou as mãos à cabeça: “Mataram Mercezinha, minha prima!”. De volta ao Brasil, Ubaldo só assistiu à minissérie por insistência de Tom Jobim. O amigo chegava a mudar o horário de seus espetáculos só para poder assisti-la.
“A imprensa cismou de inventar uma rivalidade entre nós”, recorda o poeta Geraldo Carneiro, um dos roteiristas da minissérie, ao lado de Walther Negrão. “Iam até ele insinuando que falasse mal de mim, e vinham até mim instigando a mesma coisa. João dizia que fomos tão educados ao nos esquivarmos do confronto, que nos tornamos amigos.”