“Somos uma sociedade intolerante”, diz diretora de O Animal Cordial
Gabriela Amaral Almeida estreia em longas com uma trama que mistura cinema de terror e tensões sociais típicas do Brasil atual
atualizado
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Baiana radicada em São Paulo desde 2007, Gabriela Amaral Almeida estreia em longas-metragens com O Animal Cordial, um filme de terror sobre hostilidades e tensões facilmente reconhecíveis no Brasil de hoje. Um patrão de restaurante humilha empregados. Clientes que tratam funcionários como criados. E uma chef trans hostilizada simplesmente por ser quem é – nordestina e de cabelo comprido.
Com Murilo Benício no papel de Inácio, o proprietário de um estabelecimento invadido por ladrões no fim do expediente, o longa adere à recente tendência do cinema brasileiro de transformar angústias do presente em cinema de gênero – sobretudo horror e suspense. A safra atual da produção independente reúne exemplares como Aquarius, O Nó do Diabo e As Boas Maneiras.
Em entrevista ao Metrópoles, a cineasta, de 37 anos, detalha como foi construir o filme visualmente e as necessidades de contar histórias em um país de incertezas.
O seu filme é tanto cinema de gênero quanto comentário social. Como foi equilibrar essas forças?
Eu não penso assim. As coisas vêm mais ou menos juntas. Aqueles personagens vivem essa situação, absorvem o mundo. É a minha resposta sensível a como estou experimentando as coisas que estão no ar no Brasil. É um equilíbrio que qualquer narrativa pede. Não teve nenhum procedimento prévio para garantir que estivesse lá. Foram histórias de personagens que estão no nosso cotidiano brasileiro e não em outro. Acho que foi natural levantar essas questões como pano de fundo.
O Animal Cordial tem um uso muito franco da violência. Como foi trabalhar isso com os atores para que funcionasse do jeito certo na trama?
Dei motivações para as ações de todos os personagens, inclusive aqueles que são vilões ou vítimas. Tentei não construir esses personagens com os atores para articular um discurso, mas para articular a força deles com suas características, seus lados de medo, sombrios. Os vilões são bastante frágeis, não só as vitimas. Cuidei disso no momento do ensaio para que tudo isso fosse colocado na arena, no espaço de encenação.
Acho que tem ali todo o embate de diferenças. Não vou chamar só de classes. É tanta diferença que não convive bem. As pessoas tentam delimitar com limites físicos que as separem umas das outras. Ou limites éticos ou morais.
Enfim, a gente é uma sociedade segmentada. Levamos isso a um restaurante, onde tudo aparentemente funciona com perfeição, porque um espaço segmentado. Uma vez confinadas, essas barreiras vão caindo e vão se tornando evidentes do porquê existirem. Somos uma sociedade absolutamente intolerante.
Assim que o assalto começa, o filme começa a assumir tons de pesadelo. O que fez para traduzir visualmente esse estado de espírito dos personagens?
Eu tinha uma preocupação com a Barbara Alvarez (diretora de fotografia) e o diretor de arte, Denis Netto, de a gente tentar entender imageticamente o espaço que o homem branco brasileiro, Inácio, ocupa. Ele quer imitar uma sofisticação europeia, talvez, num espaço cuja iluminação é um ato falho nas próprias sombras que o personagem projeta. Não é um ambiente super bem iluminado. Cozinha tem luz diferente porque ganha outro sentido de encarceramento, prisão.
O verde das paredes traz essa ambiência involuntária de selva, de floresta, onde os bichos estariam realmente. O Denis teve uma compreensão visual muito gerada pela compreensão das cenas. Não houve conceito prévio. Mas a maneira de estar no espaço tinha a ver como o personagem tinha organizado o lugar e como isso é reflexo dele.
Você enxerga conexões com o que se tem feito de cinema de gênero de horror e fantasia no Brasil hoje, como As Boas Maneiras e alguns outros exemplos?
Sim, com certeza. É um momento de bastante angústia, medo, indefinição. E contar histórias de medo é inevitável. É o que está se sentindo. Um não saber o que está por vir. Isso desemboca quase que naturalmente para os artistas na feitura de histórias que envolvem esse perigo do desconhecido.