“O cinema pernambucano sabe contar histórias”, diz atriz de Bacurau
Radicada há cinco anos no Brasil, franco-americana Alli Willow detalha o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles em entrevista ao Metrópoles
atualizado
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Alli Willow, atriz franco-americana do filme Bacurau, vencedor do prêmio do júri no Festival de Cannes 2019, mora no Brasil há apenas cinco anos. Resolveu se fixar no país por “pura intuição e por uma espécie de ‘chamado'”. Em 2019, sabe que fez a escolha certa. “Apesar de todos acharem uma loucura (falava apenas bom dia e boa tarde em português)”, lembra, em entrevista ao Metrópoles.
Após papéis pequenos em algumas produções da Globo, como Amorteamo (2015), Velho Chico (2016) e Rock Story (2017), a intérprete debutou em longas-metragens justamente na obra de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, O Som ao Redor) e Juliano Dornelles. Na trama, os habitantes da cidade-título percebem que o local desapareceu dos mapas após a morte de Carmelita, matriarca local. Ela interpreta Kate, uma espécie de vilã e parte do núcleo norte-americano da história.
Bacurau quebrou um tabu de onze anos sem troféus nacionais na competição do evento francês: o Brasil não era laureado desde o prêmio de melhor atriz para Sandra Corveloni, por Linha de Passe (2008).
De quebra, a artista realizou o sonho de participar de uma produção da Netflix, O Escolhido, prevista para chegar à plataforma em 28 de junho. Bacurau ganha espaço nas telonas a partir de 29 de agosto. E o segundo longa de Alli, Três Verões, dirigido pela carioca Sandra Kogut e protagonizado por Regina Casé, pode ser lançado nos cinemas ainda este ano.
Em longa e frutífera conversa com o Metrópoles, Alli detalha como foi mergulhar na cultura pernambucana e recifense para atuar em Bacurau. Também fala sobre a paixão que nutre pelo Brasil e seus papéis em O Escolhido e Três Verões.
Como foi a sua entrada no filme Bacurau? Qual o peso de ter participado de um filme já tão representativo para o cinema brasileiro?
O produtor de elenco me procurou e fiz o teste em São Paulo. Quase um ano após ter feito o teste, encontrei com o Juliano e o Kleber para bater um papo sobre o filme. Logo depois, recebi o roteiro e me apaixonei totalmente pela história. Um mês depois do encontro, a produtora entrou em contato e me avisou que eu tinha conseguido o papel. Participar de um filme como Bacurau é uma experiência transformadora. Não só como atriz, mas como humana. A vivência com a cidade onde filmamos, com realidades tão distantes da minha, me tocaram profundamente.
Conheci um pedacinho do Nordeste, com este filme, e tive um caso de amor com uma parte do Brasil que não conhecia. Ter tido uma oportunidade como esta, sendo estrangeira, vai muito além da carreira. É algo que me enriqueceu como artista. E que, finalmente, deu sentido à minha intuição. Até então, parecia loucura, de querer pertencer a esta comunidade fascinante, que é o cinema independente brasileiro. Digo sempre, me sinto uma parte pequena de algo muito grande, e, enquanto filmavam, todos nós sentíamos a importância que este filme teria pelo país e seu cinema.
Kleber e Juliano integram uma geração de cinema instigante. Fale um pouco sobre a colaboração com eles e sua personagem no filme
Trabalhar com diretores como Kleber e Juliano é uma experiência de grande entrega e confiança. Fascinada pelo trabalho dos dois, deixei o olhar deles me guiar ao longo da experiência. Foi meu primeiro longa, minha primeira vez lidando com efeitos e toda a estrutura que tem num set de filmagem desta envergadura. A caracterização foi importantíssima; pela personagem, que precisava fisicamente estar longe de quem sou na vida. E, em cada cena que fiz, acreditei 100% na direção, para poder deixá-los manipular a minha interpretação, a fim de possibilitar me moldar à personagem que eles tinham idealizado, trazendo, claro, uma fisicalidade, que eu tinha buscado, e a essência que encontrava entre as linhas do texto riquíssimo.
Posso, realmente, dizer que quem criou essa personagem foi a colaboração completa de todos os que participaram da construção dela. A personagem representa o que poderia ser considerado meu oposto. Uma “vilã” que precisava mostrar uma fraqueza na hora da virada do jogo. Uma dureza, uma crueza, um masculino exacerbado que, subitamente, mostrava vulnerabilidade quase infantil. Sem eles e sem a ajuda da caracterização, nunca teria alcançado esta entrega.
Você mora no Brasil já há alguns anos. O que motivou sua mudança para cá e o que mais te atrai na cultura do país?
Vim para o Brasil me buscando. O primeiro contato que tive foi no festival de curtas metragens brasileiros em Nova Iorque. Vi um curta da Petra Costa e pensei que seria meu próximo destino. A poesia, a sensualidade e a simplicidade me chamaram a atenção. Flavia Lacerda, com quem tinha amigos em comum, me chamou para fazer uma participação pequena na minissérie da Globo, Amorteamo, dirigida pela Isabela Teixeira. Depois de passar três meses no Rio, decidi, apesar de todos acharem uma loucura (falava apenas bom dia e boa tarde em português), me mudar, por pura intuição e por uma espécie de “chamado”.
Eu era apaixonada pela língua e quando convivi com o povo brasileiro, me apaixonei perdidamente pela riqueza e diversidade que ele carregava. Me considero uma eterna estrangeira, pois vivi em muitos lugares e nunca me senti totalmente em casa. Sou atriz por natureza, então, mesmo quando não trabalhava. Sempre buscava experiências que me permitissem uma transformação, um mergulho. E dentro do Brasil há muitos mergulhos a se fazer. Há muitas culturas a se conhecer. Faz cinco anos que estou aqui, e, a cada dia, cada papel, cada experiência me apaixono mais um pouco pelo país.
Você também participou de Delegados, outra produção pernambucana. O estado tem se destacado no audiovisual do país nos últimos anos. Que olhar eles trazem para a realidade brasileira?
Eu conheci o Nordeste filmando Bacurau. Ao acabar, passei uma semana em Recife, onde esta paixão se intensificou. A arte na cidade, o estilo alternativo, tropical e ousado me seduziram. Isso se traduz claramente no olhar que eles têm da riqueza nordestina; terra dos contadores de histórias. O cinema pernambucano sabe contar histórias de maneira simples e encantadora, abordando os assuntos mais políticos e necessários, sempre trazendo questões atuais e potentes. Acho que o mundo artístico conecta com essas histórias do cotidiano contadas nessas produções, por serem questões da nossa era, do nosso tempo, contado com o ritmo, o amor e a extrassensibilidade pernambucana.
Ainda em 2019 você estreia na série O Escolhido, da Netflix, e Três Verões, filme de Sandra Kogut. É o seu melhor momento na carreira? Fale um pouco mais sobre esses dois papéis.
O ano passado e esse são momentos de virada na minha carreira. Costumo mandar mensagens, cada trabalho que consigo, para Kleber e Juliano, agradecendo, pois sei que o que aprendi no set, ao lado deles, me transformou como artista. Depois de Bacurau, não parei um mês em casa, e quero que continue assim. O Escolhido me trouxe a possibilidade de navegar, durante seis meses, em um universo paralelo, onde vivi uma personagem que hoje faz parte de quem eu sou.
Ela é intensa, é entregue e, na sua loucura, acaba sendo engraçada (não sei como será para vocês, mas para mim, ela foi um presente). Os autores (Carolina Munhóz e Raphael Draccon) criaram uma personagem dos sonhos para qualquer atriz que busca aprender e navegar pela profundidade das suas emoções. Ela é uma sobrevivente e uma força da natureza. A personagem que faço em Três Verões é uma menina mulher, divertida e leve. Ela é americana e namora o personagem do Daniel Rangel. Foi uma filmagem muito leve e divertida.
Nos últimos anos, a arte tem sido um espaço de resistência fundamental no Brasil diante das turbulências políticas. Como você se sente fazendo parte disso?
Sinto que a arte tem se potencializado e se focado em trazer questões cada vez mais concentradas em reestruturações, por necessidade de sobrevivência. Sou artista, me sustento com arte e sobrevivo graças à arte. Então, todo esse movimento, que considero essencial para a sociedade, no âmbito mundial, tem sido vital para todas as classes. Acredito em uma arte cada vez mais acessível e cada vez mais inclusiva. Questionar tudo e reeducar pela arte é o elemento mais fundamental de uma sociedade em evolução.
Você mora entre SP e Rio, certo? Tem vontade fazer também produções na Europa?
Na Europa, nos Estados Unidos… Onde tiver trabalho e projetos interessantes, estarei!
Como foi participar de uma produção da Netflix? O que as plataformas de streaming trazem de interessante para a cultura de cinema e TV?
Em primeiro lugar, sou consumidora ativa da Netflix, então foi definitivamente um sonho poder trabalhar com a plataforma que mais assisto. Acredito que o streaming seja o futuro, mesmo insistindo que as pessoas não deixem de ir ao cinema, que permanece uma experiência totalmente diferente.
Em um país como o Brasil, onde há tantas cidades sem cinema, acho o streaming uma revolução, pois poder escolher o que se quer assistir é um luxo, quando há pouco tempo só se tinha acesso à TV em casa. Acho a convivência dos três riquíssima, se nenhuma dessas mídias perde importância e espaço no meio audiovisual.