“O Brasil prima pela negação”, diz diretor de Soldados do Araguaia
Documentário reúne relatos de recrutas de baixa patente usados pelo Exército Brasileiro para combater a Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970
atualizado
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Assistir ao documentário Soldados do Araguaia, do diretor carioca Belisario Franca, pode ser uma experiência marcante. No filme, em cartaz nos cinemas, oito homens contam histórias vividas durante a ditadura militar. Eles e dezenas de outros jovens foram recrutados como soldados de baixa patente pelo Exército Brasileiro para combater a Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970. Sofreram todo tipo de abuso físico e psicológico já no treinamento.
Um deles fala sobre o dia em que ajudou a transportar uma guerrilheira presa para um helicóptero. Ela foi jogada para fora do veículo em pleno voo. O ex-militar vê os olhos da vítima em pesadelos quase diariamente. Outro perdeu os testículos. Todos os depoimentos narram desumanidades das mais diversas. As humilhações foram apenas a ponta do iceberg. Superiores obrigavam os recrutar até a beber sangue.“Não era instrução. Era tortura”, define um dos entrevistados no filme. Segundo da “trilogia do silenciamento”, iniciada com Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil (2016), o documentário mostra o passado de uma sociedade que ainda tem muito a refletir sobre um de seus períodos mais sombrios.
“Nós somos um país que prima pela negação do racismo, do machismo, da violência. Existe um discurso permanente de olhar para frente, para o futuro. Mas se não soubermos quem somos e o que fizemos, teremos muita dificuldade na construção desse futuro. Como podemos ter justiça se não temos memória da injustiça?”, reflete Franca.
Às pessoas que estão flertando com a ideia de intervenção militar, sugiro passar duas semanas na Maré, para ver o que é conviver diariamente com intervenção. Mas depois me contem se é bacana, se funciona bem. Eu não acho que militarizar é solução alguma para esse país. Já foi provado que não é
Belisario Franca, diretor
Ao contrário da maioria dos filmes sobre a ditadura, Soldados retrata como “o terror do estado”, segundo o diretor, também atuou dentro do próprio estado. “As pessoas são de carne e osso e as histórias estão ali, foram vividas. Traumas reais de gente transformada e destruída no regime”, continua o cineasta, de 57 anos.
Próximo da trilogia
Ainda sem título e em fase de montagem, o trabalho seguinte de Franca se debruçará sobre o problemático e superlotado sistema carcerário brasileiro.
“É outro de nossos grandes silenciamentos. Podemos pensar a sociedade na maneira como ela trata seus presos. Nossa realidade prisional não é a do político, do empresário, do doleiro. É a do abandono, da injustiça”, explica.