Julio Bressane fala sobre “Beduíno” e retorno ao Festival de Brasília
Após anos de ausência, diretor carioca volta ao evento para apresentar seu mais recente filme. Em entrevista, ele também comenta carreira e a longa relação com o festival
atualizado
Compartilhar notícia
Passados quase 10 anos, ele está de volta. Uma das grandes referências do cinema de invenção no Brasil e autor experimental de fôlego incansável, na ativa desde os anos 60, o cineasta carioca Júlio Bressane marca presença novamente no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Desta vez, em sessão especial hors-concours na segunda (26/9), às 19h, no Cine Brasília.
Intelectual das imagens e de um lirismo marcante, só de prêmios no evento o inquieto artista de 70 anos coleciona quatro: em 1982 por “Tabu”, em 1997 por “Miramar”, em 2003 pelo encantador “Filme de Amor” e em 2007 por “Cleópatra”.“Tenho uma boa relação, sim, com o festival, felizmente. Uma relação cinematográfica e extracinematográfica. Conheço algumas pessoas aí, frequentei Brasília durante muitos anos”, lembra Bressane, em entrevista exclusiva por telefone, do Rio de Janeiro, ao portal Metrópoles.
“Foi um convite do (cineasta) Eduardo Valente, curador desse Festival. A expectativa é que o público tenha paciência e possa assistir ao filme, uma coisa tão fora do habitual que ele está acostumado a se nutrir”, disse, repetindo um pedido que faz todas as vezes que visita a maior e mais importante mostra do cinema nacional.
A provocação tem razão de ser. Isso porque assistir aos filmes sensoriais do diretor é sempre uma experiência inesquecível, para o bem ou para mal. Vai depender da sensibilidade criativa e tolerância imaginativa de cada espectador.
Daí a relação de amor e ódio, enfim, conflito iminente e polêmica com a plateia que, segundo o diretor de clássicos como “O Anjo Nasceu” (1969) e “O Mandarim” (1995), tem um gosto homogeneizado. “Considero o público sempre o mesmo em qualquer lugar, seja no Brasil, seja fora do Brasil. Sempre com esse gosto médio que é dominante”, observou, radicalizando. “O cinema é um organismo que atravessa todas as artes, todas as ciências, atravessa a vida”, refletiu.
Em “Beduíno”, seu novo projeto que será exibido na telona charmosa do Cine Brasília este ano, Bressane, bem ao seu estilo pessoal e intuitivo, mais uma vez se alimenta do próprio cinema para promover discussão sobre uma nova realidade que inclui “evocação à imaginação, à ficção, à memória, aos sonhos, à poesia, à música”.
A referência são os precursores da Sétima Arte como os franceses Louis & Auguste Lumière e o americano D.W. Griffith. Idealizado ao longo de quase 14 anos, o filme traz no elenco Alessandra Negrini e Fernando Eiras, atores já familiarizados com a sua cinematografia. “São grandes atores que não só tiraram do papel aquelas representações, mas construíram a própria imagem do filme”, elogiou.
Leia entrevista com Júlio Bressane:
Qual foi a inspiração para “Beduíno”, o que te levou a filmar esse projeto?
É um projeto ao qual devotei muitos anos, demorei quase 14 anos trabalhando nisso. É uma espécie assim de ode, de evocação à imaginação, à fantasia, à ficção, uma ideia de realidade mais ampla, uma realidade que incluía a memória, os sonhos, a poesia, toda a música. Isso tudo é real e é essa realidade que é evocada no filme.
O filme tem um time que é de produção, como foi um projeto daquela envergadura, um filme que retoma o velho procedimento desde o nascedouro do cinema com os Lumière (irmãos Louis & Auguste, pioneiros franceses do cinema), Griffith (David W. Griffith, cineasta pioneiro norte-americano, diretor de filmes como o polêmico “O Nascimento de uma Nação” e “Intolerância”), Méliès (Marie-Georges-Jean-Méliès, ilusionista francês, precursor do cinema).
É a produção/realização, que é o produtor/realizador, coisa que está desaparecida. Quer dizer, o produtor como alguém que realiza projeto, como se fazia nos antigos ateliês de pintura, quando existia pintura. Era feito um quadro por muitas mãos. É um filme feito por muitas mãos. Há muito realizadores ali.
Falando dos atores… Você volta a filmar com a Alessandra Negrini e o Fernando Eiras, dois nomes recorrentes em sua filmografia. Como funciona essa relação com os atores, a escolha do elenco e como foi trabalhar com essa dupla novamente?
Foi uma coisa espontânea, natural porque sempre tive esses atores em mente para fazer os papéis. São grandes atores que construíram a imagem do filme. Não só tiraram do papel aquelas representações, mas construíram a própria imagem do filme.
Poderia falar sobre esse casal que você chama de dramaturgos de sua própria existência, enfim, que são os personagens do filme?
Dramaturgos no sentido que representam a sua própria experiência, a sua própria vida. Com essa representação, evita, vamos dizer assim, um primeiro instinto de conflito, de desordem, e através da representação ordena a coisa difícil da convivência. Então fazem uma dramaturgia nesse sentido, uma representação além de si para poder entender a si próprio.
Você teve dificuldade para conseguir financiamento para esse projeto?
Para todos os filmes eu tenho muita dificuldade. Eu tenho muitíssima dificuldade sempre para qualquer filme, qualquer projeto, mas felizmente consegui por meio dos fundos setoriais da Ancine um financiamento de R$ 800 mil e fiz esse filme.
Você é um habitué do Festival de Brasília, mostra em que já foi premiado quatro vezes. Pode-se dizer que tem uma relação boa com o evento e com a cidade…
Sim… Uma relação cinematográfica e extracinematográfica, conheço algumas pessoas aí, frequentei Brasília durante muitos anos, tenho uma boa relação, felizmente.
… E com o público? O público de Brasília geralmente costuma ser um público diferente dos outros festivais.
Olha, considero o público sempre o mesmo em qualquer lugar, seja no Brasil, seja fora do Brasil. Hoje o gosto do público é um gosto homogeneizado, todas as plateias, um pouco mais aqui, um pouco mais ali, sempre o mesmo gosto e sempre esse gosto que é o gosto médio, isso é dominante.
Como avalia o seu estilo de fazer cinema que evoluiu, digamos assim, do Cinema Marginal para o que você chama de Cinema-Poema, Cinema Poesia?
Essa é uma coisa tão ampla de falar, de discutir. Não sei se agora seria a melhor maneira de fazer. Agora, essa questão de “desde cinema marginal”, isso não existe. Essa coisa de “cinema marginal” foi um crime que se cometeu. Hoje não, hoje o cinema marginal tem um certo prestígio, certo charme. Mas não tem nada disso, com esse rótulo de marginal se excluiu um grupo de cineastas, de uma maneira de se fazer cinema dos meios de financiamento, dos meios públicos. Você vai fazendo filme e vai aprendendo com o que você vai fazendo e vai se livrando do que vai fazendo.
É uma coisa muito difícil de responder por que você faz um filme. Você faz um filme para descobrir. Nunca houve uma linha evolutiva como essa que você acabou de traçar aí do “cinema marginal não sei o quê…” Isso é uma coisa que não quer dizer nada, uma fantasia, uma maneira de não se ver a coisa.
O cinema é feito por uma exigência e uma dificuldade muito grande, um organismo que atravessa todas as artes, todas as ciências, atravessa a vida. O cinema é um meio muito exigente, para estar ocorrente no cinema tem que fazer um permanente esforço. Isso independente de você ter ou não talento, ter ou não o espírito da coisa. Então você faz filme diante desse desafio. Tentar estar o mais próximo possível dentro dessa exigência.
Qual é a sua expectativa com relação ao festival deste ano?
Foi um convite do Eduardo Valente, curador desse Festival. A expectativa que eu tenho é que o público tenha paciência e possa assistir ao filme, uma coisa tão fora do habitual que ele está acostumado a se nutrir. Espero que tenha paciência com o filme.