Jukebox Sentimental: Netflix revisita encontro entre Nixon e Cash
Nixon e o Homem de Preto mostra até que ponto as velhas raposas da política dos EUA eram capazes de chegar para atingir seus objetivos
atualizado
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Johnny Cash talvez tenha sido o mais roots dos cantores norte-americanos. Aquele que encarnou em estado bruto o espírito ianque e, de certa forma, representa a autêntica alma do homem do campo, da música country e do faroeste, a base da cultura dos Estados Unidos. O presidente Richard Nixon sabia de tudo isso e colou no “homem de preto” em troca de interesses escusos. Esse é o tema da nova série Remastered, da Netflix, que estreou este mês na plataforma.
Tudo aconteceu no final dos anos 1960, período em que a América mergulhava numa de suas mais conturbadas crises morais e sociais, com a Guerra do Vietnã explodindo no sudeste asiático e conflitos raciais se arrastando pelas ruas de leste a oeste do país. Dirigido pela dupla Sara Dosa e Barbara Kopple, Nixon e o Homem de Preto mostra até que ponto as raposas velhas da política norte-americana eram capazes de chegar para atingir seus objetivos sórdidos.
Na essência, o filme, de pouco mais de 60 minutos, conta a história de um homem do povo que lutou a vida inteira pelos pobres e oprimidos. Como ele enfatiza na exemplar Man in Black, cantou para soldados nos campos de batalhas e presos amargurados em penitenciárias sombrias, até chegar à Casa Branca e desafiar o presidente com sua mensagem de justiça, mas sem saber que estava sendo usado pela máquina suja da política.
“Agradeço a Deus pelas liberdades que temos neste país. Eu as aprecio. Tenho até orgulho do direito de queimar a bandeira, sabe? Tenho orgulho desses direitos. Mas direi uma coisa… Também temos o direito de portar armas e, se você queimar a minha bandeira, eu atirarei em você”, posiciona-se o cantor com sua voz de profeta logo na abertura do filme, num discurso que cativou Nixon e sua trupe.
Patriota rebelde
O destino de Tricky Dick (apelido jocoso dado a Nixon por suas jogadas traiçoeiras na política) e o do Man in Black se cruzaram, como mostra o filme, em 1969. Naquele ano, o cantor estreava na televisão o aclamado The Johnny Cash Show, e Richard Nixon era alvo de duras críticas negativas por conta da Guerra do Vietnã. Alertado por seus assessores de que precisava conquistar a alma do sul dos Estados Unidos, mirou certeiro na figura do carismático cantor.
“Música country é o público de Johnny Cash. Você sabe… é do sul”, diz Nixon a um assessor, durante reunião na Casa Branca gravada em fitas secretas disponíveis agora ao público.
O plano era simples – embora, também, desastroso. Consistia na “estratégia sulista” de tentar atrelar a figura patriótica de Johnny Cash como simpatizante da Guerra do Vietnã perante o americano conservador de classe média, defensor dos valores norte-americanos. O que não deu certo, claro, porque, embora tenha servido no exército durante o conflito da Coreia, nos anos 1950, o astro da música country rock era contra guerras.
Mais do que isso. Era particularmente contra a Guerra do Vietnã. Enfim, um sujeito autêntico e sem papas na língua que não só não tinha medo de expressar suas opiniões como sabia expressá-las como poucos, cantando em alto e bom som suas indignações e frustrações. A incisiva What is Thuth desconcertou o presidente naquela apresentação de Johnny Cash em abril de 1970, evento que surge como o clímax do filme.
“Eu vi Nixon se contorcer na cadeira quando Johnny cantou What is Truth”, lembra uma irmã de Cash que ajuda a contar essa história junto com outros parentes do cantor e ex-funcionários de Nixon.
Mal-informados, os assessores de Nixon não sabiam ou não procuraram saber que Johnny, além de antimilitarista, era defensor, entre outras coisas, dos direitos dos americanos nativos, um tema caro ao governo estadunidense que ele fez questão de transformar num álbum conceitual: Johnny Cash Bitter Tears – Ballads of the American Indian. Ou seja, uma pedra no sapato nos planos do presidente de conquistar o sul.