Filme retrata como Lupicínio Rodrigues era o mestre da sofrência
Documentário sobre o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues estreia nesta quinta (14/03) em Brasília e restante do país. Filme eleva a música
atualizado
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Autor de clássicos da sofrência como Vingança, Nervos de Aço e Volta, o sambista gaúcho Lupicínio Rodrigues, o velho Lupi, deu os primeiros passos na música de um jeito peculiar. Criticando o rango do exército da cidade de Santa Maria (RS), onde era cabo antes de completar 20 anos. A ousadia, ocorrida em 1933, rendeu-lhe oito dias de prisão, mas o credenciaria para se tornar um dos grandes compositores brasileiros.
“Noutro dia mudou a comida”, lembraria o artista, anos depois, orgulhoso, em depoimento.
A história, divertida, é contada no ótimo documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor, de Alfredo Manevy, que estreia nesta quinta-feira (14/3) em todo o Brasil.
Premiada com Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora na 17ª edição do Fest Aruanda 2022 (Paraíba), recebendo Menção Honrosa, a obra é um belo manifesto audiovisual e porque não dizer, cultural, ao dimensionar a relevância e o legado de um dos ícones da música popular brasileira. Com trabalho de pesquisa denso, montagem fluída, a narrativa do filme explora viés psicanalítico e até mesmo antropológico ao debruçar sobre a vida, obra e causos do mestre da sofrência, morto em 1974, aos 59 anos.
O resultado surpreende. Sobretudo por elevar – por meio de depoimentos pontuais de especialistas e entrevistas raras garimpadas com o compositor, entre 1968 e 1974 –, o estilo musical, preconceituosamente chamado no Brasil de “brega” – o sofrer de amor e sentimentos como vingança, desprezo, traição, ciúme e mágoa – em poesia universal. Ou seja, nas palavras do cineasta Alfredo Manevy, em sua primeira direção: “A dor de cotovelo é um sentimento moderno importantíssimo, que explica muito o problema das relações e ao mesmo tempo ressentimentos”.
Que o diga o poeta concretista paulista Augusto de Campos, que num artigo lúcido e sincero, escrito sobre a poética passional de Lupicínio Rodrigues, nos anos 1960, o comparou ao bardo inglês William Shakespeare, à sombra de Otelo, personagem de peça escrita em 1603. “(…) E assim, como Shakespeare formulou, em termos arquetípicos, o sentimento do ciúme em Otelo, Lupicínio, o criador da dor de cotovelo, (…) praticamente desarmado, com a força de sua verdade, pelo pensamento bruto, consegue formular, como ninguém, aquilo que se poderia chamar de sentimento da cornitude”, escreveu. “Lupicínio, pelo deboche, pela ironia e pela exacerbação do brega, dá uma resposta ao ressentimento. Acho que ele, com os seus sambas, consegue colocar o dedo nessa ferida, nos fazendo não só nos emocionar, mas também transmutar, refletir”, endossa Manevy.
Negligenciado em Hollywood
Bem articulado e eloquente, Alfredo Manevy, que ocupou o cargo de Secretário Executivo do Ministério da Cultura (MinC), na gestão Juca Ferreira, e a presidência da agência paulista de cinema SPCine, conta que a ideia inicial era fazer uma série ou filme sobre a história do samba nos moldes do projeto do cineasta e historiador norte-americano Ken Burns. Um convite o fez mudar de ideia. Mas nem tanto.
“Costumo brincar que foi o Lupicínio que me escolheu”, diverte-se o ex-gestor, atualmente professor de Cinema na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Desde então acredito que foi um encontro feliz porque já tinha o desejo de fazer um trabalho sobre o samba e Lupicínio precisava de alguém que se dedicasse de corpo e alma para um diálogo com a obra dele”, diz Manevy, que dedicou cinco anos ao projeto.
Com entrevistas e depoimentos de artistas como Gilberto Gil e Elza Soares (já falecida), além de familiares de Lupi, o documentário tem na pesquisa seu ponto-chave. Daí a importância de registros raros de Lupicínio Rodrigues que, segundo Manevy, não tem tantas imagens em movimento. Amparado por muitas fotografias, a narrativa do documentário também é costurada por áudios do sambista gaúcho dados como perdidos e que remetem à história da rádio no Brasil, período em que grandes cartazes do segmento davam voz às suas composições, a exemplo de nomes como Francisco Alves e Linda Batista.
“Achamos fascinante construir o filme, diferentemente, de outras cinebiografias, não a partir principalmente das imagens da televisão, mas da sonoridade da rádio e da entrevista da rádio”, observa Manevy. “A gente não entrega o Lupicínio 100% por imagens, a gente oferece essa relação mais aberta, entre som e imagem”, detalha.
Como não podia deixar de ser, o tema do racismo não passa batido no documentário. Autor da letra e música do Grêmio, time do coração do velho Lupi, o filme mostra como as ligas de futebol gaúchas desprezavam os atletas negros e, certa vez, já consagrado em todo o país, o artista foi proibido de entrar numa lancheria em Porto Alegre.
Também aborda a complexa relação dos direitos autorais no Brasil, num intricado episódio envolvendo a música Se Acaso Você Chegasse, que chegou ser indicada ao Oscar de 1945 como trilha do musical Dançarina Loura (“Lady, Let’s Dance!”), sem o conhecimento do compositor. Segundo Manevy, longe de ser um acontecimento folclórico, a passagem revela a fragilidade da economia cultural no país e o desrespeito ao crédito de autor.
“Como uma música de um grande compositor brasileiro sai do Brasil, entra em Hollywood e ele não recebe crédito? Existe uma dificuldade do Estado brasileiro de reconhecer a importância da economia da cultura como algo estratégico. Esse episódio com o Lupicínio aconteceu com muitos autores brasileiros. O crédito é uma questão moral”, destaca o cineasta, que já trabalha em seu novo projeto. “Já comecei a filmar. É um documentário que se passa na Amazônia, conta a vida de um benzedor do Rio Negro, o primeiro do país a ser incluído no SUS e que, por meio de sua pajelança, resolve casos que a medicina ocidental não consegue”, antecipa.