Festival de Berlim: Brasil busca Urso de Ouro com Todos os Mortos
Vencedor da Berlinale com Central do Brasil (1998) e Tropa de Elite (2007), cinema nacional retorna ao evento com drama de época
atualizado
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Três anos depois que Joaquim, de Marcelo Gomes, participou da mostra competitiva de Berlim, o cinema brasileiro está de volta à disputa do Urso de Ouro. E de novo com um filme de época. O anúncio foi feito na manhã desta quarta (29/01/2020), durante a coletiva em que o novo diretor artístico da Berlinale anunciou sua primeira seleção oficial. Carlo Chatrian é italiano e até recentemente fazia a curadoria do Festival de Locarno. Substitui Dieter Kosslick, que transformou Berlim numa trincheira da discussão sobre cinema e política nos grandes festivais.
Os brasileiros – porque são dois – que vão concorrer ao Urso são Marco Dutra e Caetano Gotardo. São estreantes na seleção berlinense. Gotardo participou sem projeto do Talent Campus em 2014 e Dutra levou às rodadas de discussões do mercado um dos melhores filmes de gênero feitos no país, As Boas Maneiras. Ambos assinam Todos os Mortos.
Só participar da competição já seria honroso para o cinema brasileiro, que tem sido tão penalizado por autoridades, no próprio Brasil. A Berlinale de 2020, a de número 70, reserva uma surpresa – são 19 filmes brasileiros, incluindo curtas, distribuídos por todas as seções. O evento deste ano ocorre de 20 de fevereiro a 1.º de março. Se Joaquim contava a história do alferes Joaquim José da Silva Xavier antes de se tornar o mítico Tiradentes, personagem visceral das lutas pela independência do Brasil, Todos os Mortos passa-se no biênio 1899/1900.
A libertação dos escravos e a Proclamação da República são fatos consumados e o Brasil engatinha como nação, vivendo um processo de muita transformação. Nesse quadro, os autores contam histórias de mulheres – a doméstica, ex-escrava, morreu. Era a faz-tudo da casa, e sua perda abala as estruturas familiares. A mãe vive sozinha com as duas filhas depois que o marido partiu. A filha mais velha não quer se ocupar da casa, nem da mãe. A mais nova ainda tem uma personalidade em formação. É muito cedo para assumir responsabilidade tão grande.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Dutra e Gotardo contaram que começaram a escrever Todos os Mortos em 2013. Todas as transformações recentes que convulsionaram o Brasil têm origem nas manifestações daquele ano. Petra Costa, que concorre ao Oscar de documentário com Democracia em Vertigem, conta em seu filme, em primeira pessoa, como saiu às ruas com a câmera na mão, tentando filmar (e descobrir) o que se passava. Naquele quadro de contestação, Dutra e Gotardo também iniciaram alguma coisa que não sabiam aonde iria levá-los.
Recapitulando. Dutra, Juliana Rojas e Gotardo conheceram-se na faculdade de cinema. Com um mês de curso, Dutra e Juliana já estavam fazendo seu primeiro exercício – o primeiro filme – juntos. E assim tem sido, desde então. A diferença é que Dutra e Gotardo codirigem e Juliana é a montadora do novo filme.
“Começamos a escrever naquele momento de grande agitação. Foi um processo longo, muita coisa mudou ou foi maturada, mas o filme já nasceu com essa vontade de refletir sobre o Brasil, sobre nossas origens”, Gotardo explica. “Escolhemos aqueles dois anos porque neles identificamos, mesmo com toda a transformação da época, estruturas que infelizmente permanecem até hoje. Falar sobre a herança da escravidão permite abordar temas como a desigualdade social, o trabalho, a presença do negro na cultura e na sociedade”, acrescenta Dutra.
Por se tratar de um filme de época, foi feito todo um trabalho de pesquisa. “Foi muito gostoso trabalhar com toda essa informação, essas texturas, mas a intenção nunca foi fazer um filme de época pelo estilo. O viés é contemporâneo, e por isso, apesar de todo o cuidado, o que importa é a ressonância atual. O filme pode ser de época, mas a tragédia brasileira é permanente. Estamos muito satisfeitos com o trabalho, e curiosos para ver como será recebido, no País e fora, nesse momento em que o olhar internacional está tão voltado para o Brasil”, afirma Dutra.
O tema da escravidão é histórico no cinema brasileiro. Apareceu, nos anos 1950, no apogeu da Vera Cruz, num dos primeiros filmes nacionais premiados no exterior – no caso, o Festival de Veneza –, Sinhá Moça, de Tom Payne, com a dupla Anselmo Duarte/Eliane Lage e o reforço de uma jovem atriz negra que marcaria as décadas seguintes, Ruth de Souza. Houve o Vazante de Daniela Thomas, que provocou toda aquela discussão sobre racismo no Festival de Brasília de 2017.
Na sequência vieram Nó do Diabo, definido como o Corra! nacional, e O Juízo, de Andrucha Waddington, com Criolo, no ano passado. Os dois últimos são filmes de gênero – de horror. Dutra tem sido assíduo no gênero, e assinou o já citado – e belíssimo – As Boas Maneiras, mas dessa vez a pegada é outra. O elenco inclui muita gente de teatro, com papéis de destaque para Gilda Nomacce e a estrela portuguesa Leonor Silveira, que brilhou em filmes de Manoel de Oliveira.