Metrópoles e Paloma Rocha levam Deus e o Diabo na Terra do Sol a Cannes
Cópia restaurada em 4k do clássico de Glauber Rocha será exibida na edição deste ano do festival francês
atualizado
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Quase 60 anos depois da aclamada estreia em 1964, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, volta à casa que o lançou para o mundo. O 75° Festival de Cannes acaba de anunciar a seleção do filme para integrar a edição deste ano, na mostra Cannes Classics, quando será projetada pela primeira vez a novíssima cópia restaurada em 4k da obra máxima do Cinema Novo.
Voltada para a promoção do patrimônio cinematográfico mundial, a Cannes Classics reúne sessões fora de competição de obras recém-restauradas, tributos a diretores ou artistas estrangeiros e documentários sobre o cinema que possuam relevância histórica.
“É um ciclo completo para a nossa restauração, em que o filme será reexibido pela primeira vez no mesmo local onde ele estreou. Que seja um novo chamado de resistência cultural”, comemora o produtor Lino Meireles, idealizador e produtor do projeto de restauro, em parceria com Paloma Rocha, filha de Glauber e diretora do projeto.
Paloma acrescenta que o cinema de Glauber está sempre em redescoberta. “De tempos em tempos vem um ciclo de ressurgimento da obra”, assinala. O processo de restauração de Deus e o Diabo começou há três anos, emperrou durante a pandemia e ficou pronto somente este ano. “Ele vem como um tributo à película e à antiga maneira de fazer cinema. Mas de um jeito moderno para reconquistar novas plateias”, garante.
Um dos trabalhos mais minuciosos de restauro de um filme no cinema brasileiro, a nova versão de Deus e o Diabo na Terra do Sol partiu de um rolo de fitas originais preservado na Cinemateca Brasileira. A boa qualidade da película somou-se a um dedicado processo de digitalização, reunindo alguns dos melhores técnicos do país, como Rogério Moraes, Renato Merlino, José Luiz Sasso, Luís Abramo, e a Cinecolor.
Foi um trabalho de superação no contexto cultural brasileiro, segundo Paloma. “Num país com a cultura tão depreciada, com a produção artística sofrendo ataques, fizemos um esforço de contra-corrente. Isso só é possível porque o filme tem a força própria dele”, justifica.
O Deus negro e o Diabo branco
A Cannes dos anos 1960 testemunhou o cinema brasileiro renascer de forma visceral para um mundo apegado ainda à imagem de um Brasil das plumas e dos paetês. Havia certa lembrança do cinema autoral de Humberto Mauro e do mítico Limite, de Mário Peixoto, mas o território foi desbravado por O Cangaceiro, de Lima Barreto, em 1953 (melhor filme de aventura), e a língua portuguesa enlaçava o júri com Orfeu Negro, do francês Marcel Camus.
Em 1962, veio a improvável e inédita Palma de Ouro para um longa brasileiro, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte. Com as atenções da Europa voltadas para este cinema do Brasil profundo, que começa a ganhar vulto, eis que Deus e o Diabo na Terra do Sol chega a Cannes em 1964.
Traduzido como Le Dieu Noir et le Diable Blond (O Deus Negro e o Diabo Loiro), o filme ganha repercussão que mudaria completamente o imaginário cinéfilo e alçaria Glauber ao panteão dos grandes cineastas da modernidade. Como argumenta Paloma, o diretor entendia estar à altura de seus pares europeus. “Todo brasileiro hoje vai a Cannes com um vislumbre. Mas Glauber nunca se comportou como um colonizado. Glauber pertence a este lugar”, ressalta.
O filme que incendiou Cannes em 1964, embora não tenha sido premiado, faz um comentário crítico sobre o Brasil à beira de uma ditadura militar. A partir da epopeia de um casal sertanejo em fuga, Glauber denuncia as mazelas sociais, a hipocrisia da igreja, a corrupção das elites, ao tempo em que redime o próprio cinema brasileiro.