Crítica: road movie de amizade, Green Book falha ao abordar racismo
No primeiro filme solo como diretor, Peter Farrelly narra turnê de pianista negro e seu motorista ítalo-americano pelos EUA nos anos 1960
atualizado
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Green Book: O Guia, filme com cinco indicações ao Oscar 2019, almeja funcionar em dupla frequência: tanto um road movie de amizade, baseado nas viagens de turnê do pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali) e seu motorista ítalo-americano, Tony Vallelonga (Viggo Mortensen), nos anos 1960 quanto um drama de época disposto a comentar tensões raciais e sociais nos Estados Unidos.
Em seu primeiro longa solo como diretor, Peter Farrelly, que marcou história ao lado do irmão, Bobby, em comédias com Debi & Lóide (1994) e Kingpin (1996), inverte o mote de Conduzindo Miss Daisy (1989), vencedor do Oscar um tanto datado sobre uma senhora judia (Jessica Tandy) e seu motorista negro (Morgan Freeman).
Don Shirley, apelidado de Doutor pela excelência musical, decide viajar justamente pelos estados sulistas dos EUA, marcados pela segregação racial. Cada vez que sobe ao palco, é tratado como genial intérprete de temas clássicos.
Quando desce para o mundo real, se vê obrigado a frequentar banheiros à parte, hotéis de quinta categoria e se alimentar longe de seu público – brancos ricos, refinados e racistas. Essas e outras “dicas” alimentam as páginas do Green Book, um guia para motoristas negros que Tony recebe de funcionários da gravadora para evitar percalços na viagem.
Tony Vallelonga, ou melhor, Tony Lip (Bocudo, na tradução), também é preconceituoso. Vem de uma família de imigrantes italianos e fez fama no Bronx, bairro nova-iorquino, como um sujeito trabalhador, malandro e durão. A boate em que trabalha, Copa, fechou temporariamente após um incidente.
É quando ele recebe um convite para ser motorista de Doc durante oito semanas – o retorno está previsto para a véspera de Natal.
Escrito por Farelly, Brian Currie, conhecido como ator e, mais importante, Nick Vallelonga, filho de Tony Lip, o roteiro faz uma série de escolhas discutíveis.
Para começo de conversa, trata-se de mais uma história sobre um personagem negro de inegável importância histórica em que o branco toma o protagonismo. Ainda mais grave: a turnê vira menos uma jornada de resistência política e artística de Doc, constrangido por onde passa, do que oportunidade para Lip se redimir e se regenerar e, claro, defender seu chefe de virulentos racistas sulistas.
Certas opções só pioram o que já parece simplista e conveniente para um drama sobre temas tão complexos. Como uma forçada cena, já nos minutos finais, envolvendo um bom policial, em contraponto ao abuso de autoridade visto antes em outra passagem do filme.
Desengonçado cada vez que mira no comentário social e racial – sobram diálogos expositivos e óbvios de puro clichê hollywoodiano –, Green Book é mais feliz quando se limita à agradável dinâmica de brodagem entre Doc e Lip, ajudada por atuações inspiradas de Ali e Mortensen.
A química impressionante entre as estrelas do filme ajuda a aliviar as amenidades incômodas de Green Book, mas não livra a produção das graves derrapadas – a família de Doc, por exemplo, chamou o longa de “sinfonia de mentiras”; isso sem citar os bastidores, com casos de assédio sexual e racismo envolvendo Farrelly, Mortensen e Vallelonga.
Avaliação: Regular