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Crítica: Megalópolis abandona obssessão do realismo para criar utopia

Megalópolis, além de marcar a volta de Francis Ford Coppola, é uma experiência ímpar, otimista e utópica

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Foto colorida do filme Megalopolis - Metrópoles
1 de 1 Foto colorida do filme Megalopolis - Metrópoles - Foto: Divulgação

O retorno do célebre Francis Ford Coppola era o evento mais aguardado do Festival de Cannes deste ano, 13 anos após o lançamento de Virgínia (2011). O artista de O Poderoso Chefão, Apocalypse Now e A Conversação encontrou em Megalópolis o projeto com que sonha desde que escreveu o roteiro na década de 1980. Contudo, por razões sobretudo financeiras, o realizador somente tirou o projeto do papel cerca de quatro décadas depois. Fez isto com US$ 120 milhões do próprio bolso, para criar uma obra cinematográfica singular, um fato cada vez mais infrequente em uma indústria artística que padroniza os filmes para comercializá-los com facilidade.

No roteiro, Cesar Catilina (Adam Driver) é um arquiteto renomado e com “um apetite insaciável” para criar uma utopia na cidade de Nova Roma, alternativa à Nova York na fábula criada por Coppola. Ele tem no prefeito Cícero (Giancarlo Esposito) um adversário com uma visão política e urbanística diferente, e cuja filha, Júlia (Nathalie Emmanuel), entra como um ponto médio na relação conturbada entre artista/gênio e político/burocrata, iniciando um relacionamento amoroso com o protagonista. Caso tenha somado dois mais dois, notou que o casal pode ser lido como ‘Júlio(a) César’. Na contramão de César e Cícero, há Clodio (Shia LaBeouf), o herdeiro do banqueiro bilionário Crassus III (Jon Voight), recém casado com a jornalista Wow Platinum (Aubrey Plaza).

Contar a sinopse não ajudará o leitor a perceber o que de fato é Megalópolis. Aliás, desconfio que não haverá crítica que tenha a capacidade de traduzir, em palavras, o que Coppola ambicionou em realizar em uma obra que, à primeira vista, pode ser interpretada como uma cacofonia estilística ou um maximalismo estilísticos.

Francis Ford Coppola durante sessão em Cannes - Metrópoles
Francis Ford Coppola antes da sessão Megalópolis em Cannes

Coppola recruta um conjunto de elementos visuais que, para a maioria dos diretores, seriam irreconciliáveis, e que aqui serve de tecido para uma costura narrativa exagerada ou brega, não que isso pareça demérito. Até acredito que Coppola tenha aberto uma gramática cinematográfica – não que precisasse, mas serve para ilustrar e empregar todos, eu digo todos, ângulos, enquadramentos, lentes etc. – para que a história da Nova Roma fosse equivalente àquela de excessos que levou à queda do Império Romano.

Coppola não procura coerência estilística. Ele traz o bombardeio de estímulos que resvala na experiência imediata do público, que pode amar ou odiar, abandonar com 30 minutos ou até revisitar incontáveis vezes para descobrir o que ainda não havia descoberto. É bem melhor do que obras pasteurizadas e empacotadas toda semana em uma linha de produção massacrante do que significa ambição artística. O cienastas realizou não um filme perfeito, e sim uma experiência singular, no qual reflete acerca da figura criadora (o artista) em face aos obstáculos colocados diante do que deseja criar.

Assim, não exalta o artista como este ser perfeito e ilibado, mas ao menos o enxerga como quem procura alternativas criativas para problemas mundiais que renascem a cada ciclo. Há muito Coppola em César, o artista atormentado e isolado pela alma artística e que batalhou contra produtores durante a carreira para manter íntegra a sua visão artística.

Megalópolis e a utopia

Ainda assim, Megalópolis excede na imagem o que não realiza no roteiro. Não que a alegoria da Nova York como a Roma contemporânea seja descartável, é somente que Coppola é tomado de um pedantismo onde nem deveria haver, posicionando-se – assim como Cesar – acima e não ao lado de seus pares. Entretanto, a jovialidade do diretor octogenário é maior do que muito jovem saído da faculdade de cinema e que quer ser o Orson Welles ou Jean-Luc Godard da vez. Com a ajuda da direção de arte de Beth Mickle, cria quadros cinematográficos inesquecíveis, tipo aquele em que vigas parecem sustentadas no firmamento, já que não há lugar onde estejam visivelmente fixadas. Ou na maneira com que as janelas na cobertura onde Cesar mora formam uma coroa.

Essa é a virtude por excelência da narrativa, subjugar a obsessão do espectador de cinema contemporâneo por realismo e verossimilhança em favor de um cinema livre e impossível, na forma como retrata o que somente a imaginação de poucos poderia conceber. É por isto que aprecio a arte. Não para ter minhas expectativas validadas, mas para ser surpreendido pelo que mal poderia ser capaz de sonhar. Roma é só a superfície de uma obra que paraleliza a Revolução Francesa ou o Regime Nazista, na esperança de propor um diálogo otimista para que seja construído um amanhã utópico. Não em termos arquitetônicos, mas sociais e humanos

Assim, ainda que o roteiro seja omisso ou lacunoso, com descarte de personagens, acontecimentos e desdobramentos, existe um desejo sensível e concreto de Francis Ford Coppola em tornar Megalópolis uma experiência ímpar e que posso garantir a você, jamais vista antes.

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