Crítica: Jogador Nº 1 vê mundo pop pelo olhar aventureiro de Spielberg
Novo longa do diretor de E.T. (1982) e Jurassic Park (1993) acompanha jogadores em busca de easter egg dentro do venerado game OASIS
atualizado
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Em Jogador Nº 1, Steven Spielberg aproveita toda a pirotecnia digital a serviço de uma narrativa ambientada em um videogame para atualizar seu cinema sobre solitários (a maioria órfãos) em busca de refúgio na fantasia. Em 2044, o mundo anda tão superpopuloso, poluído e hostil que a vida só faz sentido na infinitude lúdica do jogo intitulado OASIS.
Nele, só não é possível dormir, comer ou ir ao banheiro. Criado pelo gênio da tecnologia (e eterno menino sonhador, tal qual o cineasta de E.T.) James Halliday (Mark Rylance, vencedor do Oscar por Ponte dos Espiões, de Spielberg), o game virou o epicentro da economia mundial. Permite diversão sem limites por meio de uma articulação aparentemente infinita de referências pop. É um jogo que parece a soma acumulada de todos os jogos que vieram antes dele.
Com um tino inabalável para contar histórias de aventura, Spielberg segue os passos de Wade Watts (Tye Sheridan), órfão que vive com uma tia descompensada. Ele mora em uma das milhares de favelas do futuro, formadas por trailers empilhados. Como qualquer outra pessoa do planeta, gasta horas a fio juntando moedas virtuais e explorando as possibilidades do OASIS.
Watts, conhecido como Parzival, seu avatar no game, é apenas um dos milhões de jogadores à procura de um easter egg cuidadosamente escondido por Halliday, morto há poucos anos. Quem achar a relíquia torna-se dono do jogo e herda a fortuna trilionária do empresário. A segunda maior companhia em atividade, a IOI, também quer o tesouro. Representada por Sorrento (Ben Mendelsohn), figura corporativa quase ancestral em tempos de conectividade absoluta, recruta e escraviza jogadores mundo afora.
Baseado no livro homônimo de Ernest Cline, também coautor do roteiro com Zak Penn (Vingadores), Jogador Nº 1 é um raro filme que, de fato, tenta emular a narrativa de um videogame. Chegar ao easter egg também envolve o olhar do espectador. Três desafios impõem aos participantes decifrar charadas que misturam passagens da biografia de Halliday – disponível em uma imensa biblioteca audiovisual dentro do OASIS – com suas infinitas referências pop, entre filmes, músicas, games e livros de todas as épocas.
Um genuíno filme-jogo
Se esse é o Avatar segundo Spielberg, nada mais justo que sigamos um esquadrão de renegados contra autoridades que ameaçam controlar e destruir a única coisa que parece fazer sentido na Terra. Ele se junta aos amigos Art3mis (Olivia Cooke), Aech (Lena Waithe), Sho (Philip Zhao) e Daito (Win Morisaki) para encontrar o easter egg antes de IOI.
Nós, o público, temos uma tarefa menos cascuda e mais divertida: mapear e identificar as conexões que o filme constrói. Parzival dirige um DeLorean, carro da trilogia De Volta Para o Futuro, na primeira das três missões. Antes da linha de chegada, obstáculos como King Kong e Tiranossauro Rex, “estrela” da franquia Jurassic Park, dificultam a corrida dos jogadores.
O segundo desafio é de ordem cinéfila. Os personagens entram, literalmente, na mansão amaldiçoada de O Iluminado (1980), o 11º filme de terror favorito de Halliday, segundo nos informa Watts. Por meio de recortes digitais, o diretor cria uma horripilante fase de videogame dentro do clássico de Stanley Kubrick, seu frutífero parceiro na criação da obra-prima spielberguiana A.I.: Inteligência Artificial (2001). Belíssima homenagem.
A terceira e última charada coloca os jogadores à frente de uma TV de tubo para jogar Adventure, antigo game de Atari. Entre uma tribulação e outra, a colagem pop não é menos do que alucinante. Aech cria um avatar baseado no robô dócil de O Gigante de Ferro (1999), Art3mis pilota a moto de Akira (1988), Mechagodzilla enfrenta Gundam nas cenas finais. Lá pelas tantas, Parzival solta até um hadouken.
Jogador Nº 1 talvez queira agradar até demais com sua frequente exposição de marcas nostálgicas. Mas, Spielberg, um narrador tradicional tentando compreender a geração atual, consegue mostrar com fôlego, carinho e um tantinho de reflexão nosso relacionamento cotidiano com o simbólico e o fantástico.
Há uma certa ideia de humanismo meio requentada e piegas no terço final – a lição dada por Spielberg é que ninguém joga sozinho (na vida e no OASIS). De qualquer maneira, o filme exala a vibração de um videogame difícil de largar.
Avaliação: Bom