Crítica: “Fome” desconstrói a estética da pobreza
Filme de Cristiano Burlan, com Jean-Claude Bernardet, destila um poderoso discurso anti-“Estamira” e anti-Sebastião Salgado
atualizado
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Rodados em preto e branco, planos longos enquadram um velho homem a desbravar as ruas do centro de São Paulo. Ele é Jean-Claude Bernardet, cada vez menos teórico e mais ator. Em “Fome”, filme de Cristiano Burlan, o belga radicado no Brasil se entrega a um personagem baseado no improviso e inscrito numa espécie de residência artística urbana, lá fora, sob sol e lua, com fome e frio.
Esse sujeito faz malabarismos rudimentares e pede uns trocados no semáforo. A cada negativa, critica os burgueses que respiram o ar-condicionado em seus veículos. Em outro momento, Jean-Claude é abordado por um ex-aluno, Francis Vogner, também acadêmico de cinema. O velho homem parece ter largado a universidade para abraçar a liberdade de uma vida sem laços ou compromissos, em que basta o caminhar.
Com apenas R$ 15 mil de orçamento, Burlan cria uma espécie de tratado crítico sobre a estética da miséria por meio de um teórico que é justamente um crítico dessa estetização. O diretor usa a personagem de uma estudante universitária para reforçar essa problematização. Ela, a mando do professor, vai às ruas com um gravador para entrevistar alguns andarilhos — incluindo Jean-Claude.
Ao voltar para a sala de aula, vê-se angustiada ao notar que a tal compaixão pode ser um tanto cruel e egoísta. Essas pessoas livres são interrompidas em suas jornadas sem rumo para uma conversa. Elas se abrem, contam suas angústias e histórias. Depois, são excluídas do processo, nada é feito por elas. A não ser um texto que deverá ganhar prestígio pela “sensibilidade” de quem o escreveu.
Jean-Claude e Burlan remexem a hipocrisia que também faz parte de certo cinema – e jornalismo, por que não – brasileiro, tão interessado na pobreza para somente registrá-la, embalá-la e por meio dela afagar os corações dos bons burgueses.
“Fome” destila um poderoso discurso anti-“Estamira” e anti-Sebastião Salgado. Pois nada é mais pungente (e propositalmente irônico) que um intelectual europeu filmado em preto e branco nas ruas da maior metrópole brasileira.
Avaliação: Bom
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