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Crítica: em A Casa que Jack Construiu, Von Trier segue serial killer

Obra funciona como filme-testamento do diretor dinamarquês

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1 de 1 a casa que jack construiu (6) - Foto: Divulgação

O termo “filme-evento” geralmente designa o lançamento de blockbusters muito aguardados. Ame-o ou o odeie, Lars von Trier é um daqueles cineastas provocadores que obrigam seus novos trabalhos a serem chamados de eventos pela completa imprevisibilidade de suas obras. Sem dúvidas, a sessão de gala de sua nova obra, A Casa que Jack Construiu, no Festival de Cannes 2018, necessita de uma pequena crônica, além da crítica costumeira, para explicar o que realmente foi a experiência deste evento. Perdoe a autoindulgência.

Von Trier foi declarado “persona non grata” em Cannes após a coletiva de imprensa de Melancolia, filme que concorreu à Palma de Ouro em 2011, ao fazer uma piada sem graça na qual dizia se identificar com Adolf Hitler. O banimento sugeriu que ele nunca mais seria bem-vindo na cidade. Neste ano, o Festival recuou. Thierry Frémaux, diretor artístico, disse que a pena estava cumprida, e incluiu A Casa na categoria Hors-Concours, onde os filmes são exibidos em uma sessão de gala, mas não concorrem a nada. Uma vitrine importantíssima. No festival, mas sem concorrer ao prêmio máximo, o longa também não teve conferência de imprensa.

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Como a sessão de gala seria a primeira apresentação do filme para qualquer público, a expectativa era um misto de curiosidade e temor. Não havia nenhuma impressão sobre a obra circulando pelas rodas de jornalistas ou pelas filas que levavam ao teatro Lumière. Embora muitos achem a obra de Von Trier algo tipo “oito ou oitenta”, diante da qual você vai ser um grande fã ou um forte detrator, sempre me coloquei no meio-termo. Acho que ele tem verdadeiras obras-primas do cinema (Dogville, Dançando no Escuro, Melancolia, Ondas do Destino, O Grande Chefe) e verdadeiros desastres (Anticristo, Ninfomaníaca 1 e 2).

Eu estava com grandes expectativas para o filme, mas não para o que aconteceu logo antes. Com as mais de 2.000 poltronas do cinema ocupadas, Lars finalmente entrou com membros de sua equipe. Todos levantaram e o aplaudiram por mais de 5 minutos. As ovações e o aplauso exagerado são uma das características de Cannes, e já vi uma sessão de aplausos durar quase 10 minutos – só que depois do filme ter passado, nunca antes. Ser louvado assim, logo de cara, antes mesmo de apresentar sua obra, foi inesperado e inédito, acho que até para o próprio diretor. O filme começou em seguida.

A Casa que Jack Construiu toma a forma de uma conversa entre Jack (Matt Dillon), um serial killer, e Verge (Bruno Ganz), cuja imagem fica oculta até o final do filme. O tom da conversa é uma mistura entre o confessional, o terapêutico e o teórico. Imaginamos que Verge pode ser um padre, um terapeuta ou um intelectual. A conversa entre os dois gira em torno de uma teoria de Jack: seus assassinatos são obras de arte. Ele resolve então contar cinco episódios de sua vida para Verge, a fim de convencê-lo.

Imagino que Lars negaria esta minha próxima suposição até a morte: Jack é a criação mais autobiográfica que o diretor já inventou, e o filme todo é uma metáfora sobre ele, sua relação com a própria obra, e as reações que ele e ela causam no público. Desta mesma maneira, A Casa é um filme melhor para quem conhece ele e sua obra. É também a pior maneira possível para tentar iniciar alguém no mundo de Lars von Trier.

Os cinco episódios narrados por Jack, engenheiro e arquiteto que tenta projetar e construir o lar ideal para si próprio nas horas vagas, são variados e por vezes inconsistentes. Cada um tem bastante a dizer sobre os vários períodos de sua obra, mas uma análise mais profunda de cada um estragaria as surpresas e tensões do filme. A mais perfeita, em minha opinião, é a que conta com a participação de Riley Keough como uma namorada de Jack. Extremamente explícitas, violentas e perturbadoras, com pequenas pitadas de humor macabro, estas cenas causaram rejeições da plateia, e vários espectadores abandonaram a sessão.

Uma das cenas mais perturbadoras envolve um patinho e fiquei me perguntando por que me incomodara tanto uma cena com um personagem animal e menos as outras tantas onde são torturados e assassinados homens, mulheres e crianças…

Verge é uma voz ativa na conversa, sempre debatendo os pontos que Jack levanta, momentos do filme que formam pequenos descansos da violência e que lembram até as inúmeras videomontagens a que Jean-Luc Godard se dedica hoje em dia. Uma das grandes perguntas de Jack, por exemplo, é que ele nunca se preocupou muito em ocultar seus crimes. Como exemplo maior, relata a vez que arrastou um corpo atrás de uma van até seu esconderijo, deixando uma longa trilha de sangue que poderia levar a polícia até sua porta. Sua sorte é que, ao completar o trajeto, uma chuva fortíssima cai pela cidade e apaga o que seria seu desleixo. Teria ele um anjo da guarda celeste?

Se considerarmos que Jack é Lars von Trier, e os assassinatos sua obra cinematográfica, enxergo como clara a metáfora de que, até considerando todo o bafafá negativo que o lançamento de uma obra sua crie, Von Trier sempre consegue fazer o seu próximo filme. Oras, se este diretor é uma pessoa tão ruim quanto pensam (assim como seria um serial killer), por que diabos ele nunca para de trabalhar? Jack, alias, é um assassino que nunca se livra de suas vítimas, preferindo preservar os corpos em um antigo frigorífico, guardando-os por toda parte, como se fossem DVDs de filmes aos quais ele poderá sempre consultar. Assim como os corpos que Jack guarda, as obras de Von Trier não desaparecem quando ele as termina.

O ato final, após a apresentação dos cinco episódios de sua vida, Lars, ou melhor Jack, se torna ainda mais explícito em seu filme-testamento. Pela primeira vez, apresenta cenas de seus próprios filmes dentro de um novo trabalho. Também confronta o Festival de Cannes diretamente ao discorrer sobre Adolf Hitler e ao continuar a debater a relação entre arte e violência. No momento mais explícito de todos, Jack diz abertamente algo como “as pessoas imaginam que estas ficções que criamos são válvulas de escape onde exercitamos nossos próprios desejos mais perversos e mais hediondos”, suposição esta que eu já havia feito sobre o próprio Von Trier.

A Casa que Jack Construiu serve tanto como o último filme de um cineasta complexo, que por um instante imaginei que Von Trier se mataria em plena sala de cinema do Festival de Cannes, ao final da sessão.

Felizmente, não acertei, e mesmo que o mundo inteiro o critique, Von Trier saiu de Cannes pronto para realizar mais uma obra.

Avaliação: Ótimo – para quem conhece Lars von Trier

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