Crítica: As Viúvas leva debates sociais urgentes ao circuito pipoca
Entre tiros e explosões, filme trata de racismo, violência doméstica e policial, casamento interracial e o abismo entre classes sociais
atualizado
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O diretor Steve McQueen acredita que o primeiro take é o mais importante de cada filme. Não à toa, a imagem que abre As Viúvas, seu novo longa, é a do casal protagonista, Veronica e Harry Rawlings (Viola Davis e Liam Neeson) na cama, trocando um beijo de língua. Iniciar a narrativa com uma cena tão íntima de um casal interracial de meia-idade é um aviso: este é um blockbuster com bojo.
A sequência inicial do longa é igualmente genial. Entre os beijos e o afeto do casal, o desenrolar de um roubo malsucedido. De maneira dinâmica, com uma montagem que lembra o famoso batizado no final de O Poderoso Chefão (1972), McQueen coloca boa parte das peças deste jogo em seus devidos lugares no tabuleiro. Outra amostra da eficiência do roteiro é a maneira escolhida para situar a narrativa em Chicago: em um diálogo bem no início do filme, um personagem menciona a cidade, sem a necessidade de muletas clichês para estabelecer o cenário.
O filme pode parecer, à primeira vista, um Oito Mulheres e um Segredo (2018) com metade da equipe. Trata-se, no entanto, de um olhar mais denso sobre o gênero de filme de assalto. As sequências de ação, os tiroteios, as perseguições de carros e os vilões assustadores estão bem ali. Mas a maneira escolhida para representar cada um destes aspectos foi minuciosamente pensada e resulta numa obra que entretém sem deixar de falar de temas sociais urgentes.
Sutilmente, à medida em que a narrativa permite, os roteiristas McQueen e Gillian Flynn inserem pílulas de crítica social. A parte mais fácil do plano de assalto orquestrado por Veronica é comprar armas: afinal, o filme se passa nos EUA. Outro tema que está sempre ali é a violência doméstica. A primeira cena de Alice (Elizabeth Debicki) tem a personagem com olho roxo. Enviuvada e sem dinheiro, é estimulada pela mãe a se submeter à prostituição e a outro relacionamento abusivo, porque foi criada para ser sustentada por um homem, custe o que custar.
A dupla de vilões, os irmãos Jamal e Jatemme Manning (Brian Tyree Henry e Daniel Kaluuya) são criminosos num distrito pobre de Chicago e o mais velho quer entrar para a política. Em seu primeiro diálogo com o oponente na eleição, Jack Mulligan (Colin Farrell), Jamal denuncia sem dó os interesses escusos do homem branco e rico de governar uma população negra e pobre. Neste filme, nenhuma pessoa de cor está a salvo: a violência policial contra a população negra é uma das mais importantes denúncias da história – e também um ponto chave para compreendermos as motivações do casal de protagonistas.
Até mesmo dentro das classes menos abastadas, a diferença causada pela cor da pele é exposta. Tanto Linda (Michelle Rodriguez) quanto Belle (Cynthia Erivo) são mulheres pobres, mães solo. A diferença é que a mulher latina consegue pagar para a mulher negra ser babá de seus filhos. Enquanto uma trabalha fora, a outra deixa a filha com a mãe para cuidar de crianças que não são as dela.
Estes tipos de subtramas poderiam ter ficado de fora do roteiro. Afinal, para um longa de assalto, bastam boas sequências de ação, reviravoltas inesperadas na trama e um plano genial de roubo. Este não é, no entanto, o cinema de Steve McQueen. A mensagem é clara e merece ser ouvida por todos os realizadores da indústria: não é porque um filme é comercial que deve deixar de tratar com seriedade grandes pautas sociais.
Avaliação: Ótimo