Crítica: As Boas Maneiras é fábula de horror sobre um Brasil desigual
Novo filme da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra acompanha mãe (Marjorie Estiano) e babá (Izabel Zuaa) de criança diferente das outras
atualizado
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É possível ver As Boas Maneiras, novo filme da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra (Trabalhar Cansa), sob diferentes abordagens. Um drama sobre os abismos de um Brasil desigual. Uma fábula que narra gestação e primeira infância de um menino único, saído de um conto de fantasia. Ou até uma história de horror à maternidade.
Duas mulheres de origens distintas, uma da elite rural, outra da periferia, se encontram em uma São Paulo contemporânea reimaginada pelas lentes do habilidoso fotógrafo português Rui Poças, cujo trabalho pode ser notado em bons longas europeus, como O Ornitólogo (2016) e Tabu (2012).
Grávida do primeiro filho, Ana (Marjorie Estiano) se mudou para a metrópole recentemente. E precisa de apoio. Encontra a ajudante e babá ideal na estudante de enfermagem Clara (a portuguesa Isabél Zuaa, vista em Joaquim), uma jovem tímida e melancólica, de gestos e olhares comedidos.
As Boas Maneiras se divide exatamente em duas partes. Na primeira, uma atmosfera de tensão sexual toma conta do apartamento em que Ana vive e Clara trabalha. O clima de atração também abriga sutis camadas de suspense: essa gestação não é como qualquer outra.
Na segunda, pulamos alguns anos e vemos Joel (Miguel Lobo, estreante no cinema) sendo criado por Clara, agora gerente de uma farmácia. O garotinho não pode comer carne e, nas noites de lua cheia, é acorrentado e aprisionado em um abrigo. Sob o céu iluminado de São Paulo, vira um lobisomem.
Rojas e Dutra levam ao limite essa proposta de fabular sobre a realidade, misturando crônica social – uma sofisticada alegoria dos excluídos no Brasil de hoje – com as possibilidades do gênero fantástico.
Para tal, articula um bocado de coisas: a força gestual das atuações de Marjorie e Isabél, efeitos especiais (práticos e digitais), cenas aterrorizantes – a do parto é qualquer coisa de brilhante –, espectro de emoções (desesperança, solidão, medo) típico de conto de fadas e um visual caprichado, capaz de artificializar São Paulo de uma maneira que jamais vimos antes.
Ainda que a segunda metade do filme perca na comparação com a primeira, praticamente intocável, As Boas Maneiras merece figurar entre os longas brasileiros mais ousados e instigantes da história recente. Um trabalho autoral que busca no cinema de gênero o vigor para criar mitos, contar uma boa história e fabular livremente sobre o país que habitamos.
Avaliação: Ótimo