Crítica: A Mula é road movie existencial de Clint Eastwood
Prestes a completar 89 anos, veterano volta a atuar após quase uma década no papel de um octogenário que transporta drogas para um cartel
atualizado
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Numa das últimas cenas de A Mula, novo filme de Clint Eastwood, o octogenário Earl Stone lamenta o tempo que desperdiçou longe da família. Se pudesse, compraria mais dias, semanas ou meses para estar próximo da ex-mulher, da filha e da neta. Esse arrependimento vem de um velho homem que, no fim da vida, ganhou milhares de dólares transportando drogas para o cartel mexicano de Sinaloa.
Cada novo projeto de Eastwood tem lá suas particularidades. Este motivou o experiente diretor a voltar a atuar, algo que não fazia desde o subestimado drama de beisebol Curvas da Vida (2012). Em filmes assinados por ele, não interpretava desde Gran Torino (2008).
Em A Mula, o astro de 88 anos – faz 89 em maio – colabora novamente com o roteirista de Torino, Nick Schenk, para adaptar uma reportagem do New York Times sobre um veterano da Segunda Guerra Mundial apaixonado por flores e plantas que trabalhou para narcotraficantes durante quase uma década.
Sempre com seu típico humor seco e rabugento, Eastwood não faz nenhuma questão de esconder as fragilidades físicas – do homem de cinema e do personagem. Seu negócio de lírios anda em crise e ele corre risco de perder a propriedade rural – tudo culpa do comércio via internet, segundo ele.
Stone enxerga uma oportunidade única para descolar uma grana levando centenas de quilos de drogas para Illinois, estado onde mora. Ao longo da carreira como floricultor, conheceu 41 estados norte-americanos dirigindo. Jamais recebeu uma multa. Insuspeito, branco e idoso, é o motorista perfeito para cruzar o país sem ser incomodado pelas autoridades policiais.
Para todos os efeitos, Eastwood é um diretor de cinema clássico trabalhando no mundo contemporâneo. Por isso, foge de cinismos convenientes – pense como seria fácil fazer um filme fatalista com esse personagem – e excessos sentimentais. A Mula articula uma economia emocional de rara honestidade, apoiada em composições visuais conduzidas sem arroubos ou penduricalhos desnecessários.
Enquanto acumula dinheiro a serviço do cartel, Stone nutre sentimentos doloridos sobre a convivência distante com a família. Não fala com a filha única, Iris (Alison Eastwood, veja só, filha de Clint), há mais de uma década.
O apreço pelo novo trabalho lhe permite reformar o centro de ex-combatentes de guerra e realizar sonhos da neta, Ginny (Taissa Farmiga). Ao mesmo tempo, a rotina na estrada o mantém confinado em seu egoísmo cruel, refém de um tempo jogado fora que jamais conseguirá recuperar.
Como define Mary (Dianne Wiest), sua ex-mulher, o Stone elegante, querido, sensível, divertido e bon vivant – diferentes pessoas o comparam a James Stewart, um dos atores mais populares e carismáticos de Hollywood entre os anos 1930 e 1960 – era pouco visto em casa.
Aos poucos, uma ação do DEA, o departamento anti-drogas dos EUA, começa a fechar o cerco em torno das mulas de Sinaloa. O núcleo operacional soa discreto, mas objetivo, movendo-se do ponto A ao B. Mesmo assim, permite uma aproximação entre o agente Colin Bates (Bradley Cooper), líder da força-tarefa, e Stone para além da relação polícia-bandido.
Lá pelas tantas, esse road movie existencial ainda tem uma ou duas coisas a dizer sobre afeto, culpa e responsabilidade em suas derradeiras cenas. Um filme duro, sensível e pensativo que começa e termina com um velho homem acariciando suas flores.
Avaliação: Ótimo