“Cora Coralina — Todas as Vidas” traz múltiplas faces da poeta goiana
O produtor Márcio Curi e o diretor Renato Barbieri comentam o filme, que estará no Festival de Brasília e chega ao circuito de cinemas em outubro
atualizado
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O produtor de cinema Márcio Curi tinha dois anos de Brasília, em 1973, quando cismou em conhecer o Brasil profundo. Quando deu por si, estava em Goiás Velho, comprando doces de uma senhora poetiza que morava numa velha Casa da Ponte. Mal sabia ele que, passados mais de 40 anos, aquela figura simples e magnética seria personagem de um de seus projetos cinematográficos.
O documentário “Cora Coralina – Todas as Vidas” será um dos destaques deste ano da Mostra Brasília do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Com direção de Renato Barbieri, o filme deve ser lançado nos cinema em outubro deste ano pela Tucumã. Trata-se de um passeio sensível pela vida e obra de um dos nomes mais interessantes da literatura brasileira.
Estava conhecendo a cidade com minha mulher e visitamos a casa muito rapidamente. Cheguei a vê-la, conhecê-la, mas não ainda com os olhos de quem imaginou que algum dia ia fazer um filme sobre ela. Foi um encontro fugaz, ela já era famosa na época e me vendeu doces
Márcio Curi, produtor
Biografia livremente adaptada
O filme é baseado livremente na biografia “Cora Coralina – Raízes de Aninha”, de Clóvis Carvalho Britto e Rita Elisa Seda. Barbieri conta que o projeto nasceu de um convite feito pelo neto da artista, o biólogo Paulo Sérgio Bretas de Almeida Salles, e pelo amigo Márcio Curi, parceiro, entre outras empreitadas, do encontro Teste de Audiência, realizado regularmente na Caixa Cultural.
O diretor escreveu o roteiro junto com Regina Pessoa. “A Cora é uma figura de grande estatura e fazer este filme foi um desafio à altura de sua grandeza”, avalia Barbieri. A familiaridade do cineasta com a carreira e obra da artista vem desde os anos 1980, quando trabalhava na produtora cinematográfica Olhar Eletrônico.
É o primeiro longa-metragem sobre a Cora Coralina depois de vários bons curtas sobre ela. É uma personagem que tem fôlego para esse formato porque foi alguém à frente do seu tempo, uma mulher do Brasil profundo que enfrentou dogmas e tabus sociais violentíssimos
Renato Barbieri, diretor
Múltiplas vozes entre ficção e documentário
Para contar a trajetória dessa mulher, exemplar por suas glórias pessoais e literárias – mesmo que tardia –, a narrativa poética se desenvolve por meio das vozes das várias mulheres que habitou dentro dos 95 anos bem vividos de Cora Coralina. Tudo enfeixado numa mescla de cinema verdade, ficção e lirismo com a cumplicidade de um time de jovens e experientes atrizes.
A pequena Camila de Queiroga Salles, tataraneta de Cora na vida real, interpreta a menina Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, lá nos idos do século 19. As brasilienses Maju Souza e Camila Márdila encarnam, respectivamente, a poetiza na fase adolescente e mulher jovem. Beth Goulart e Zezé Motta vivem uma Cora etérea e outra imponente. Coube à veterana Walderez de Barros personificar a Cora Coralina que todos nós conhecemos, ou seja, a mítica senhora da Casa da Ponte.
Buscamos o desafio narrativo, procurando fazer um documentário poético que tem elementos ficcionais, com várias atrizes interpretando Cora em diferentes épocas da vida. Todas muito identificadas com a figura e a obra de Cora Coralina.
Renato Barbieri, diretor
Mulher de coragem e espírito vanguardista
“Cora Coralina – Todas as Vidas” já foi exibido com retorno positivo do público em sessões especiais de mostras como o Festival Internacional de Cinema Ambiental (Fica) e a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). Em abril deste ano, o filme levou o Prêmio Margarida de Prata da CNBB.
Entre os pontos destacados está o trabalho de pesquisa que traz à tona passagens conhecidas da trajetória de Cora Coralina, outras nem tanto. Tudo isso por meio de depoimentos de parentes, amigos e especialistas, imagens raras, vídeos com entrevistas da personagem e o próprios textos da poeta.
Por meio desses recursos narrativos sabe-se, por exemplo, que o período em que Cora Coralina passou na Fazenda Paraíso, ainda em Goiás, entre 1900 e 1905, foi determinante para forjar o lado telúrico bastante presente em sua obra, assim como foi o lugar onde ela cunhou o nome diferente que tanto encantava Carlos Drummond de Andrade.
“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás. Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaina moderna”, escreveu o poeta mineiro em crônica do Jornal do Brasil de dezembro de 1980.