Cannes: “Sem Seu Sangue”, de Alice Furtado
A mistura de um amor adolescente com uma exploração do macabro tem resultados inesperados.
atualizado
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Se a vontade de se viver um romance adolescente pleno já enfrenta demasiados obstáculos na tela do cinema, como rivalidades familiares (à la Romeu e Julieta), diferenças de classes sociais (Diário de uma Paixão, alguém?), ou mesmo um preconceito racial (Adivinhe Quem Vem Para Jantar), os estudantes Sílvia (Luiza Kosovski) e Artur (Juan Paiva) tem algo mais tenebroso a encarar: uma morte repentina, porém mais do que anunciada em “Sem Seu Sangue”, primeiro longa-metragem da diretora carioca Alice Furtado.
Ambos se conhecem no colégio. Antes de Artur, Luiza era uma adolescente exageradamente apática, sem qualquer coisa que lhe estimulasse a viver. Em contraponto, Artur sofre do oposto. Sua vontade de extrapolar é ocasionada não por um certo joie de vivre, mas por rebeldia. Portador de hemofilia, doença que impede o coágulo do sangue e assim facilita sangramentos fatais, ele corre perene risco de vida, pois se dedica a atividades como futebol, skate e motociclismo.
Luiza rapidamente se vê apaixonada, e os dois começam a namorar. Só que nem a força de um amor intenso e íntimo é capaz de prevenir o óbvio. Em um acidente de moto, logo no primeiro ato do filme, Artur morre. O foco da história, de fato, é o processo emocional de Sílvia, e os contornos macabros que sua recusa em aceitar a morte como força de separação reúne.
Em um primeiro momento, ela adoece fisicamente, passando por uma bateria de exames que não resolvem em nada a situação. Em um exílio paradisíaco no sul do Brasil, uma viagem com seus pais para tentar aliviar sua depressão, Sílvia aprende que a morte não será necessariamente o último adeus.
“Sem Seu Sangue”, apesar de ser o primeiro longa-metragem da diretora, se porta com uma mão segura, aonde atmosfera e imagem são mais importantes que trama. Furtado, há de se dizer, tem larga experiência com o cinema curta-metragem, já apresentando seu “Duelo Antes da Noite” em Cannes há oito anos. Esta mão segura de Furtado, porém, pode agir como uma vantagem ou um empecilho para o desenrolar do filme nos cinemas. Se por um lado é evidente que ela fez o filme que queria, por outro talvez ele não apele ao grande público.
Muito da dificuldade da conexão vem do próprio perfil da personagem Sílvia. Sua longa hibernação depressiva permanece como um obstáculo de ritmo ou mesmo de simpatia do espectador. Visto que Artur se recusou a mudar seu comportamento de risco quando estava com ela, há de se considerar se sua dependência emocional a ele, mesmo enquanto vivo, era saudável. É difícil imaginar, de tão intensa a emoção do filme, que não se trate de algo um tanto autobiográfico.
Na segunda parte, do mencionado exílio, o filme volta a ter a energia de Artur, desta vez com a introdução de dois novos personagens: André (Digão Ribeiro) e Matthieu (Nahuel Pérez Biscayart). Os dois moradores locais ajudam Sílvia a navegar por uma certa lenda local, que une a cultura haitiana ao desejo de Sílvia de rever o namorado. Furtado mescla ainda influências do cinema e da literatura americana de terror, todas referenciadas nas estantes do cenário.
“Sem Seu Sangue” ainda contém uma carta na manga, algo difícil de se ver no cinema atual: um final perfeito.
Avaliação: Bom (3 estrelas)