Cannes: “Portrait de la Jeune Fille en Feu”, de Céline Sciamma
Em um mundo cujas regras foram impostas pelo masculino, duas mulheres vivem um romance em busca de um pouco de liberdade.
atualizado
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Embora homens nem sequer apareçam no novo filme da diretora francesa Céline Sciamma, são as regras que eles criaram e impuseram as forças ocultas que limitam as vidas não apenas de Marianne (Noémie Merlant) e Héloïse (Adèle Haenel), personagens principais, mas também de todas as outras coadjuvantes. O filme se passa no século 18–na verdade, é quase todo um flashback, a partir do momento que Marianne, professora de pintura encontra, em plena aula, um quadro antigo de sua autoria.
Ela se lembra imediatamente de uma viagem à costa francesa, um trabalho comissionado, cheio de peculiaridades. Marianne está lá para pintar um retrato da jovem Héloïse, embora esta não deverá saber de nada. A esperança da mãe (Valeria Golino), é que Marianne acompanhe a jovem em seu dia-a-dia, fingindo ser uma criada, observar sua feição, e com isso pintar o quadro. O resultado final será enviado a um nobre de Milão, noivo de Héloïse, que nunca a viu.
Ao estruturar seu filme, Sciamma não tenta esconder a premissa central: que as duas jovens viverão uma paixão. O que ela pretende explorar é o surgimento deste desejo e sua exploração em um período tão restrito, aliando-o a outras experiências femininas que deveriam ser libertadas de seus tabus.
Adèle Haenel, que vive a jovem em chamas (pelo menos é o que o título indica), já é uma estrela francesa conhecida mundo afora–e seu casting, como o “objeto” a ser retratado para um casamento arranjado é perfeito. Noémie Merlant, por sua vez, faz as voltas da plateia, intrigada pela jovem que deverá retratar. Héloïse nunca aceitaria sentar para um retrato, ainda mais depois da morte de sua irmã, que se jogou de um dos penhascos próximos, uma fuga trágica do que seria seu próprio casamento forçado.
Marianne e Héloïse se deslocam constantemente, não só para que Sciamma e seu fotógrafo comporem quadros belíssimos, mas também para contrastar a quietude do cenário interno com a barulhenta natureza, composta do vento intenso, da água gelada e do fogo devorador, todos estes elementos simbólicos do que elas sentem por dentro. (Os figurinos também são bem aproveitados.) Os dias que vivem juntas são um idílio, e a evocação de um Éden simbólico, para o gozo de uma liberdade particular, é evidente.
É difícil descrever o tanto que Sciamma consegue explorar com suas imagens e com seus subtextos. “Portrait de la Jeune Fille en Feu” incorpora elementos de histórias de fantasma, do surrealismo, da política de gênero, do filosófico e do erótico. O fato de tudo ser um flashback nos deixa pensar que as duas não ficam juntas no futuro. A tragédia real do filme, porém não está na morte, mas sim numa existência ditada pelos outros.
O plano final do filme, verdadeiramente assombroso, é inesquecível.
Avaliação: Ótimo (4 estrelas)