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Cannes: Metrópoles entrevista Kleber Mendonça Filho sobre Bacurau

Terceiro longa-metragem do pernambucano, desta vez co-dirigido com Juliano Dornelles, marca a segunda vez que concorre à Palma de Ouro

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Léo Laumont/FDC
Kleber Mendonça Filho
1 de 1 Kleber Mendonça Filho - Foto: Léo Laumont/FDC

Kleber Mendonça Filho conhece o Festival de Cannes há décadas. Após uma longa carreira como crítico, aposentou-se há nove anos para dedicar seu tempo aos seus esforços cinematográficos de diretor, roteirista e produtor. Com uma filmografia de curtas e longa-metragens premiados e reconhecidos no Brasil e no exterior, concorre este ano, pela segunda vez, à Palma de Ouro, desta vez com o filme Bacurau (a primeira foi em 2016, com Aquarius).

No filme, Bacurau é uma pequena cidade do interior Nordestino, acossada repentinamente por alguma força sombria em sua margem. Ambientada em um futuro próximo, a trama tem como plano de partida a morte de Dona Carmelita, matriarca da cidade, e a chegada de Teresa, que nasceu ali e partiu para a cidade grande.

O Metrópoles conversou com o diretor 3 dias após a sessão de estreia, evento que comoveu a plateia e a equipe, com lágrimas nos olhos, ao acender das luzes. Confira:

Metrópoles: Pesquisar o filme na IMDb [espécie de enciclopédia cinematográfica] revela uma trama completamente diferente, sobre um documentarista que foi visitar a cidade de Bacurau e viu que tinha coisas estranhas acontecendo lá. Foi uma versão do filme?

Kleber Mendonça Filho: O filme passou por várias versões de roteiro, e sempre a gente trabalhou com a ideia de forasteiros. Em algum momento era uma equipe de filmagem, mas depois de um tempo eu desgostei disso porque parecia um tipo de metalinguagem que não achava mais interessante de ver. E a ideia dos forasteiros evoluiu para o que hoje é filme, com a estrutura clássica de western, de uma única rua, com casas e igreja, escola… Todas as versões começavam também com uma cena, uma sequência no centro do Recife à noite, onde a personagem de Teresa corria pra pegar o último ônibus, que no Recife se chama bacurau. E aí ela corria com uma multidão, num certo clima de pesadelo assim, e eles chegavam e entravam numa frota de ônibus, todos saindo na mesma hora. Até que isso também caiu… Foi um processo muito longo de desenvolvimento e que passou por muitos ajustes e mudanças ao logo de nove anos, mais ou menos.

Metrópoles: Na produção vocês criaram um mundinho ali, um microcosmo. Imagino que isso tenha acontecido também na filmagem. Que talvez exista um volume grande de material que ficou de fora do corte final…

Kleber: Na verdade, não. Surpreendentemente não. Eu até gostaria que isso existisse, porque, sei lá, a gente poderia fazer uma série, um material dividido em capítulos. O filme que você viu é exatamente o que a gente filmou. O que não entrou foram cenas muito curtas, aquele exemplo clássico de que no roteiro faz sentido, mas no filme não faz sentido.

Metrópoles: Isso tem muito a ver com o tempo disponível de produção?  Você mencionou em outra entrevista que usaram muito trilho para movimentar a câmera, deve ter sido algo meio insano…

Kleber: O Thiaguinho e Tareco, nossos chefes de maquinário, eles anotaram quantos metros de trilho usamos, tipo 1.300 metros de trilho em dois meses. É muita coisa. E a gente tinha no máximo 30 metros. Ou seja, todos os longos movimentos que tem no filme não podiam passar de 30 metros. Mas tudo bem, eu acho que é um tipo de restrição que ela lhe estimula, sabe? Por exemplo, um diálogo de repente vai ser mais condensado porque a gente só tem 30 metros pra fazer esse diálogo. Ou vai desacelerar bastante a velocidade dos atores andando e da câmera se movimentando, porque a gente tem 30 metros. Eu acho bem interessante a imagem desses movimentos.

Metrópoles: Você menciona também no pressbook a lente Panavision. Como é que foi arranjar isso, como é que foi você saber que poderia usar ela na produção?

Kleber: O filme é uma coprodução francesa e parte do acordo de coprodução envolvia a parte técnica. E em Paris tem Panavision e a gente trouxe as lentes de Paris. A questão principal é que os filmes modernos, os filmes de hoje em dia, usam essencialmente câmeras digitais de altíssima resolução e lentes muito modernas, o que faz com que os filmes tenham uma aparência muito semelhante entre eles. Isso me incomoda um pouco. Eu descobri isso a primeira vez quando eu estava no festival em Copenhagen, o CPH PIX, e depois de eu ver 10 filmes em uma semana, eu comece a quase enjoar da mesma imagem, sabe? A mesma imagem incrível, tá. A mesma imagem excelente. E a gente conversou muito, eu, Juliano e Pedro, como é que a gente pode, como é que a gente pode tentar apresentar algo que pelo menos seja alguma coisa diferente. E aí a gente achou que a união de uma supercâmera como a Alexa com uma lente de 50 anos de idade, e com um look bem específico, que é a lente Panavision, a gente poderia ter isso.

Essas lentes elas são um pouco imperfeitas. Mas essa imperfeição é exatamente o que a gente queria. E elas dão um desfoque muito bonito.

Metrópoles: Bacurau é um filme de resistência, literalmente e metaforicamente, pelo conflito que seus personagens vivenciam e pela metáfora de que esta resistência deveria se estender. Sendo assim, o filme fica um pouco à prova de crítica? Por defender elementos tão importantes como a cultura e a educação?

Kleber: Não sei, a gente tem tido críticas incríveis e tem outras críticas que não são tão incríveis. Eu não sei por que ele seria à prova de críticas. Tem muita gente que não defende a educação…
A gente construiu o filme como filme de aventura, e as ameaças que existem no filme fazem parte da história humana. O mundo tem histórias de invasões, agressões e a gente nunca pensou em fazer uma resposta a nenhum governo. Na verdade, os dramas e conflitos do filme são repetições. O Brasil ele fica se repetindo, os problemas. Ele não parece conseguir avançar. E também historicamente, em termos de mundo, o mundo é marcado por invasões.
Imagina, o filme é um filme futurista e tem problema de água, por exemplo, que é o problema crônico, histórico, da região Nordeste. Tem um político que é corrupto, pelo amor de deus, isso faz parte da história do mundo. Então, o que eu acho mais interessante é que o filme, como uma obra de expressão artística, ela vira um espelho e aí você vê o que você quer. Isso é muito interessante.

Metrópoles:  Fãs do gênero de terror reconhecerão que, geralmente, não se mata nem criança nem cachorro. Vocês fizeram os dois. Foi de propósito? Foi pensando no gênero ou não?

Kleber: Não. Foi pensando em guerra. A guerra, ela não tem regras. E isso eu acho muito duro. Eu acho que dramaticamente quando isso acontece você é colocado num estado de alerta muito forte e muito sério. Você não se sente seguro, e eu acho que era o que tava acontecendo em Bacurau, ali. Eles estavam realmente sendo atacados de maneira muito violenta. Então não é uma questão de gênero, é uma questão de ilustrar a guerra.

Metrópoles: A cena central do filme revela bastante do que está acontecendo neste ataque sombrio à cidade de Bacurau.

Kleber: É uma reunião empresarial quase, né, logística e objetiva… Metas.

Metrópoles: Existe ali uma exposição de um certo tipo de brasileiro, que se vê superior a maioria do povo brasileiro.

Kleber: É extremamente delicado, porque tem muito a ver com poder, com cultura, com raça, visão de sociedade, com mundo rico / mundo pobre. O Brasil é, ou faz parte, do chamando mundo pobre, né? Mesmo que muitos brasileiros acreditem que o Brasil talvez não deveria fazer parte, existe uma discrepância entre o que o Brasil acha e o que o mundo acha.
Eu cresci na Inglaterra e aprendi desde cedo uma certa visão que existe do nosso país, quanto uma visão que temos como brasileiros do nosso país. Na minha vida adulta inteira, eu viajei muito, continuo viajando muito e, uma vez, eu fui pra Holanda num voo da KLM e aconteceu uma coisa muito forte, que me chamou muita atenção. Na imigração, era um voo São Paulo-Amsterdã. Ao sair do avião 777, no túnel, já tinha três policiais com três pastores-alemães cheirando todo mundo que tava passando ali. Tudo bem, pode ser que voos do mundo inteiro tenham esse tratamento, mas já foi um pouco estranho.
Quando chega na imigração, onde apresenta o passaporte, tinham muitos brasileiros, porque obviamente era um voo vindo do Brasil, e tinha três mulheres negras que estavam mais pra minha frente e eu fiquei me perguntando se vai ser tudo bem com a gente ou se eles vão ser muito exigentes com todos nós, ou com essas mulheres negras, e, pra minha surpresa, um cara branco, alto, bem São Paulo, que, na nossa leitura, é rico. Eu sei que ele é rico, eu sei o tipo, eu conheço o tipo social: ele era um homem branco, rico, de São Paulo, jovem. Ele é que teve problema. E foi levado pra uma sala, que não é uma coisa boa. Ele foi levado e todo mundo, inclusive as mulheres negras, carimbo, carimbo, carimbo e todo mundo foi embora. Eu nunca esqueci essa coisa das diferentes percepções. E eu achei muito interessante. Eu acho que essa cena veio dessa memória.
E eu, como pernambucano e nordestino, também já presenciei umas coisas, até em festivais internacionais de cinema, com brasileiros, onde um brasileiro do Sudeste tenta explicar pro estrangeiro com quem a gente tá falando, que ele ou ela vem de outra região que não é a minha, e que a região dela é diferente e é mais rica e que não é como a minha região. Quando na verdade somos todos brasileiros, né?

Metrópoles: A população de Bacurau é bem diversificada, e com certeza envolveu um casting muito interessante. Como foi?

Kleber: O trabalho foi feito por Marcelo Caetano, um cara incrível, que é realizador também, fez Corpo Elétrico, e ele trabalhou com a gente em Aquarius também. E aí, Marcelo faz um mapeamento de atores do Brasil inteiro, ele viaja pras cidades pra fazer casting, conhecer as pessoas e gravar vídeo. Ele viajou pra Fortaleza, João Pessoa, Campina Grande, Maceió, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Rio. E aí é um processo superlongo, porque o filme sempre teria atores profissionais ou atores, mas, quando a gente chegou na locação e começou a conhecer pessoas da região, a gente foi se apaixonando por elas e também queria colocá-las no filme. E aí o filme foi sendo preenchido por todo tipo de gente. Atores profissionais, atores sem tanta experiência e pessoas que nunca atuaram antes na vida.

Metrópoles:  A Bárbara Colen, que interpreta Teresa, atuou em Aquarius. Esse convite já se fixou na sua cabeça enquanto ela trabalhava em Aquarius?

Kleber: Sim, sim, sim. Quando a gente escolheu ela pra atuar em Aquarius, o Juliano falou: “Teresa! Seria ótimo ela fazer a Teresa”.

Metrópoles:  Vocês como roteiristas também, fazendo esse filme há tanto tempo, como é que é decidir botar um ponto-final no roteiro e partir pra produção?

Kleber: Você sabe que acabou. Você sabe. É um processo parecido com a montagem. A gente montou em 10 meses. Mas, quando você chega no final, você tem certeza. Você tem certeza quando você vê o filme pela quadragésima vez e você não vê mais nem um problema no fluxo que você criou. É a mesma coisa no roteiro. Você escreve o roteiro, e toda vez que você relê essa cena, “a gente precisa melhorar isso aqui…”, “tá chegando muito rápido nessa cena…”, “a reação dela tá muito exagerada…” ou então “ela não tem reação, tem que ter reação”. Quando você relê o roteiro e você só tem prazer lendo o roteiro, aí é que chegou ao fim. Mas realmente… leva tempo.

Metrópoles:  Como estão os próximos trabalhos?

Kleber: Eu tô ainda na câmera de descompressão de Bacurau. Duas semanas atrás a gente ainda estava fazendo ajustes finais. O último ajuste do filme inteiro foi no início do filme, quando vem um cara andando na distância e dá um tiro pra cima. Desde o roteiro, a gente disse que seria correto com a física, ele dá o tiro e [pela distância] o som chega depois. E o laboratório na última cópia colocou o som junto com o tiro. Aí eles tiveram que voltar pra colocar o som depois do tiro.

Metrópoles: O Netflix diz pretender produzir muito no Brasil, a princípio, você faria um streaming?

Kleber: Sim, sim. Me agradaria muito se eu me envolvesse em um projeto que eu já soubesse que é streaming. Eu acho que eu acharia um pouco estranho, fazer Bacurau como a gente fez, com a estética que ele tem e depois entender que ele não vai pro cinema, que ele vai pro streaming. Eu não seria contra, mas eu acharia um pouco estranho. Minha resposta é a mesma do David Lynch: “Eu faria um filme que por acaso eu acharia os pontos pra dividir”. Não sei se eu conseguiria pensar em capítulos. Eu acho que eu faria um filme de 14 horas e aí acharia os pontos interessantes pra dividir e transformar em episódios.

Metrópoles:  Como está a distribuição brasileira do filme?

Kleber: É da Vitrine Filmes, a gente trabalhou em Aquarius e Som ao Redor, Silvia Cruz. A gente tá bem animado, bem feliz, tentando achar uma data, porque tem muito filme agora em junho/julho de blockbuster e a gente não pode ter a situação, como aconteceu com De Pernas Pro Ar 3 agora. Eu sei que o filme estava indo bem e ele foi empurrado pra fora [o filme novo dos Vingadores ocupou 80% das salas de cinema no Brasil]. E eu acho também que tem uma energia muito forte assim ao redor de Bacurau já na mídia, mídias sociais, eu olho por curiosidade. Eu acho que o Avengers é um filme extremamente popular que precisa chegar às pessoas, mas eu acho que deve ter uma maneira mais civilizada de fazer isso. Titanic ficou seis meses em cartaz. O Titanic entrou em três salas no Recife em 1998. Três.

Esta entrevista foi editada para efeitos de clareza e concisão.

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