Cannes: “Manbiki Kazoku”, de Hirokazu Kore-Eda
Um dos melhores humanistas do cinema, Kore-Eda surpreende em mais uma história sobre uma família fora dos padrões
atualizado
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Na primeira vez que vemos o cinquentão Osamu Shibata (Lily Franky) e o menino Shota (Jyo Kairi), os dois estão executando uma jogada ensaiada para furtar comida de um mercadinho. Enquanto a relação de pai e filho geralmente desencoraja este tipo de comportamento, o novo filme do japonês Hirokazu Kore-Eda, cujo título traduzido quer dizer “Furtadores”, é sobre uma família atípica, em mais de uma maneira. Osamu e a esposa Nobuyo (Sakura Ando) são dois vigaristas veteranos, engajados em manter sua família alimentada e abrigada enquanto ensinam seu truques e estratégias para as crianças.
No começo do filme formam um clã de cinco pessoas: além de Shota, o casal mora com uma avó (Kirin Kiki) e uma adolescente, Aki (Mayu Matsuoka), todos metidos em trambicagem. O maior meio de financiamento da família vem da pensão da avó, que ganhou do governo o misto de barraco e casa em que todos habitam na condição de que ela more lá sozinha (numa cena em que um servidor pública chega para uma inspeção, os outros quatro moradores são forçados a se esconderem e fugirem discretamente). Aki, por outro lado, trabalha numa espécie de bordel-light, aonde as mulheres podem se exibir para seu clientes, e, caso eles paguem mais, abraçá-los e deitar de conchinha, nada mais. Apesar de ser um trabalho legal, carrega conotações de exploração.
A dinâmica da casa muda um pouco quando Osamu e Shota, após um dia de “trabalho” (treinamento e pequenos furtos) se deparam com uma menina (Miyu Sasaki), que parece abandonada, se sacudindo de frio. Eles tentam levá-la para casa, mas ao avistarem cicatrizes e marcas de abuso no pequeno corpo da menininha, decidem que isto seria uma péssima ideia. Osamu, portanto, decide adotá-la. Ela agora se chamará Rin. Apesar de uma hesitação inicial de Nobuyo, a pequena vira uma nova membra da família. Quem tem dúvidas quanto à isso tudo é Shota, que agora divide as atenções com a nova irmã caçula.
Kore-Eda se interessa por um único assunto em seus filmes: família. Não numa exploração do termo tradicional, mas sim em todas os seus desvios, além de seus contrastes entre classes sociais. Em “Ninguém Pode Saber”, uma mãe solteira abandona os filhos em seu apartamento e os pequenos pretendem manterem-se sem avisar ninguém, por medo de que sejam separados em um orfanato. “Pais & Filhos” mostra o rebuliço de duas famílias de classes sociais diferentes quando descobrem que seus filhos foram trocados um pelo outro na maternidade. “Nossa Irmã Mais Nova” envolve três mulheres adultas acolhendo uma irmã desconhecida, que seu pai teve fora do casamento. Deu pra entender…
“Manbiki Kazoku” às vezes parece uma confluência de todos estes trabalhos, como um grande ensopado temático: a família de classe baixa no Japão, cujos membros tem de se virar na pobreza, enquanto transplantam uma criança de uma família que não a amava para outra que, embora não garanta conforto, providencia segurança e amor. A maior parte do filme consiste em ver o dia-a-dia desta família, sentir tensão quando algo os ameaça, divertir-se com seus trambiques e emocionar-se em seus momentos de tranquilidade.
Nada disso deve ser facilmente aceito pelo espectador, pois Osamu Nobuyo estão criando estas crianças por fora da sociedade, sem escola ou interação social. Pois Kore-Eda é humanista demais para deixar que as decisões e as personalidades de seu personagens sejam maniqueístas, com uma linha clara entre o certo e errado.
Tudo isto faz parte de um filme bom, e nada monótono. Aonde Kore-Eda vai além de seus trabalhos habituais, é no final da história. Sabemos que em cinema o conflito é necessário, e que a precariedade com a qual a família adota (ou rapta) Rin levará a algum tipo de desfecho desconfortável. O desfecho é menos previsível que se espera, e enquanto um tanto de tensão emocional é prevista, os solavancos são mais fortes do que o esperado. Enquanto vários filmes parecem se enrolar em seus epílogos, aonde a ação principal já terminou e o que acontece parece supérfluo, “Manbiki Kazoku” parece recomeçar.
Avaliação: Ótimo (4 estrelas)