Cannes: “Climax”, de Gaspar Noé
Nova obra do provocador nato é tão misantrópica quanto as outras, só que de uma energia e maestria estonteantes
atualizado
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Em uma imensidão branca, tomada pela neve, uma personagem corre, deixando um rastro de sangue atrás de si, e depois cai, se contorcendo de dor. É o final da história de “Clímax”, mas também a primeira cena a ser exibida. Trata-se da mais nova obra de Gaspar Noé. O começo, que aparece logo depois, é menos traumático. Vemos uma televisão, rodeada de livros, que corta entre diversas entrevistas de jovens que tentam um lugar numa trupe de dança.
O filme começa, realmente, durante uma comemoração da turma. Após um ensaio da apresentação que farão em uma turnê americana, mais de uma dúzia de dançarinos começam a comemorar e se descontrair. Por um certo tempo estão felizes, fofocando e trocando ideias até que, um por um, começam a sentir coisas estranhas. Alguém encheu a sangria de LSD, sem que os outros soubessem e, durante o resto do filme, vemos uma intensa “bad trip” coletiva levar todos do céu ao inferno.
Em matéria de narrativa, “Clímax” é o filme menos ambicioso da carreira do diretor. Sua narrativa mais ambiciosa, “Enter the Void”, tentou encobrir toda a existência de uma vida, de nascimento à morte. Dividiu críticos e ninguém assistiu. “Love”, seu filme mais recente, quis retratar um triângulo amoroso com sexo explícito. Com atores limitados, mas com disposição para fazer tudo que seu diretor pedisse, não impressionou. Noé, então, parece ter resolvido falar mais com menos.
Seu elenco é composto inteiramente por dançarinos famosos. Sofia Boutella deve ser a única reconhecida, por já fazer blockbusters em Hollywood, mas antes de se destacar como atriz, ela já era uma dançarina famosa, que marcava presença em comerciais da Nike. Nenhum outro tem histórico como ator. Talvez por isso, Noé se limitou a criar personagens que representem menos pessoas tri-dimensionais, e mais arquétipos.
O que pode se dizer de grupo, é que ele é representativo de uma França atual: pessoas de todos os tons de peles, sexualidades e estilos de vida. Todos são jovens, e portanto completamente dissonantes de tradições francesas. Alguns são imigrantes. Se um Francês idoso olhar para o casting do filme, dirá o mesmo que vários disseram sobre a seleção de futebol francesa em 1998: irreconhecíveis. Por se tratar aqui de uma jornada destes personagens para um inferno metafórico, há que se estender a conotação política destas pessoas para refletir a direção política mundial nos últimos dois anos.
Grande parte do destaque do filme vai para Benoit Denoit, o fotógrafo que, sem uso de efeitos especiais, cria movimentos e enquadramentos de ação mais impressionantes e pulsantes do que os estúdios Marvel conseguem com todos os seus super-heróis e milhões de dólares. “Clímax” merece ser visto só pelo seu nível técnico, que usa e abusa de todas as tecnologias já inventadas para posicionamento de câmera. Neste aspecto, parece mais uma animação aonde, sem a restrição de uma câmera física, o fotógrafo pode criar a imagem que quiser.
“Clímax” deve ficar para história também como um filme de dança. O filme simplesmente não para, uma mesclagem perfeita de movimento, fotografia, montagem e som. A primeira cena de dança, que parece ser um ensaio do que a tropa apresentará nos EUA dura 15 minutos e é um único take, desimpedido e sem limitações. Pela primeira vez num filme de Noé, as sequencias inesquecíveis não são afixadas a uma imagem da humanidade em seu pior estado.
Descrever este filme não o distingue das outras obras do diretor, mas vale ressaltar que Noé extirpou o que suas head-trips tinham de excesso e realizou sua obra-prima.
Avaliação: Excelente (5 estrelas)