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Cannes: “Armageddon Time”, de James Gray

Presença constante no Festival, Gray apresenta com sucesso o filme mais pessoal de sua filmografia.

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Festival de Cannes/Divulgação
Armageddon Time
1 de 1 Armageddon Time - Foto: Festival de Cannes/Divulgação

James Gray é um diretor nova-iorquino que não hesita em expandir seus horizontes cinematográficos. Apesar de fielmente mostrar sua cidade-natal nas telonas, já fez filmes que se passam na Inglaterra e nas selvas da América do Sul, assim como a vastidão do espaço sideral. Só que o coração das trevas nunca esteve em terras tão distantes, mas sim bem próximo: dentro de seu próprio passado.

Seu alter ego juvenil é Paul (Banks Repeta), descendente nova-iorquino de judeus europeus começando a cursar a 6a série numa escola pública do Brooklyn. Muito ligado à família, que inclui a mãe Esther (Anne Hathaway), o pai Irving (Jeremy Strong) e o irmão mais velho Ted (Ryan Sell), Paul é fascinado pelo avô materno, Aaron (Anthony Hopkins), que enxerga no pequeno todo o potencial do mundo. É o começo da década de 80 um pouco antes da eleição de Ronald Reagan, que formou o tipo de conservadorismo hoje degringolando nos EUA, para presidente de seu país.

Paul tenta viver uma infância plena e brincalhona, mas vive levando bronca na escola pelas travessuras que ama causar com seu melhor amigo Johnny (Jaylin Webb). De um desenho de seu professor com corpo de peru a uma pequena fuga durante um passeio de sala a um museu, tudo que Paul e Johnny fazem tem um ar de inocência, pelo menos até que os dois são pegos no banheiro da escola experimentando um cigarro de maconha. É aí que a história dos dois amigos dá uma forte guinada, por caminhos bem diferentes. Afinal, Paul é branco, e Johnny é negro.

O leque de possibilidades para diretores que fazem filmes sobre a própria infância oscila entre o nostálgico e o sentimental. O que sobrepõe “Armageddon Time” é que ele se nega a ambos. Está presente aqui uma obra autobiográfica que parece castigar seu personagem principal, pois as lições que Paul está prestes a aprender – sobre racismo, privilégio, justiça, dinheiro e família – são as mais duras que uma criança pode ter.

Após o episódio da maconha, ambos são expulsos. A família de Paul consegue matriculá-lo numa escola privada, já Johnny simplesmente larga os estudos. Logo ele, que sonhava em ser astronauta, enquanto Paul pretende ser artista. É claro que o espectador já sabe da impossibilidade dos sonhos de Johnny se realizarem nessa história (ao mesmo tempo em que o protagonista do filme é hoje um diretor de renome). Talvez seja por isso que o filme é tão brutal em sua história.

A temporada americana de premiação no final do ano deverá recompensar bem o filme, especialmente o trio de atores mais velhos. A amicabilidade de Hathaway, Hopkins e Strong em seus papéis são o que nos faz acreditar neste retrato de família. As pequenas disputas, as conversas durante o jantar, a atenção ao detalhe no cenário de seu apartamento… Gray constrói uma família real, todos com dúvidas sobre como conduzir suas vidas e sobre como lidar com o comportamento rebelde de Paul.

Todos exceto Aaron, o avô dengoso, cheio de histórias e sabedoria para compartilhar com seu pequeno favorito. Existe uma âncora moral no filme, e esta é Hopkins. Quando Paul lhe revela como os novos colegas da escola privada tratam os colegas negros, ele é o único capaz de instruí-lo a fazer a coisa certa, sem prevaricações. Durante o resto do drama, todos parecem discordar sobre o que é certo ou errado, ou pelo menos como se deve agir defronte a injustiça do mundo.

É esse ponto que faz o filme de Gray se sobressair: não é apenas uma lembrança, mas também uma tentativa terapêutica de refletir sobre as diferentes ondas de ódio que a sociedade contemporânea enfrenta. Como Michael Haneke fez com “A Fita Branca” (vencedor da Palma de Ouro em 2009), Gray retrata uma comunidade específica para refletir sobre o que acontece 30, 40 anos depois. A cena de Jessica Chastain (num papel surpresa que não vale a pena revelar aqui) é a ligação entre 1980 e 2022. A prevaricação de pessoas que se dizem ser “de bem”, ontem e hoje, é o que possibilita a presença da injustiça. Sem didatismo, Gray denuncia a nós e a si mesmo com uma força brutal.

Avaliação: Excelente (5 estrelas)

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