Atriz brasiliense Mirella Façanha fala sobre filme Cidade; Campo
Cidade; Campo, novo filme de Juliana Rojas, é um dos mais aguardados do Festival de Gramado
atualizado
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Gramado (RS) – Uma das estreias mais aguardadas do Festival de Gramado foi Cidade; Campo, da diretora Juliana Rojas. Premiado no começo do ano no Festival de Berlim e impactado pela pandemia, precisou de muita luta e criatividade para chegar às telas. Após uma estreia emocional para o elenco, o Metrópoles conversou com a brasiliense Mirella Façanha, uma das protagonistas dessa história.
Metrópoles: Mirella, você vem de Brasília, mora em São Paulo e agora rodou um filme em Mato Grosso do Sul. Consegue manter alguma influência da terra natal neste trabalho?
Mirella Façanha: Com certeza. Eu moro em São Paulo há 15 anos, mas o que me funda é Brasília. Eu passei por um processo de migração, saindo muito jovem de Brasília para São Paulo e acho que o filme tem muito a ver com muitas coisas da minha vida também, coincidentemente ou não. Eu levo Brasília, sim, acho que isso tá impresso no meu corpo, um corpo que viveu migração, que tem o cerrado como uma inspiração. Filmando no Mato Grosso do Sul, eu vejo muitos cenários parecidos com Brasília. A tristeza daquela soja, que a gente também vive em Brasília, no cerrado, no Goiás.
Você tem dois momentos de estreia, um em Berlim, sem ter visto o filme, sem saber o que esperar de público e de crítica. Agora, é a primeira vez que o filme vai passar no Brasil, só que já tendo visto o filme, e já com o filme premiado. Qual a diferença dessas duas experiências?
Mirella Façanha: Eu estava muito ansiosa pro filme estrear no Brasil. A gente viveu essa estreia em Berlim, essa estreia mundial, com um público diverso, porque tem pessoas do mundo inteiro, mas muito europeu, então não necessariamente compartilham imagens. Eu acho que é um filme brasileiro extraordinário, tem muitos signos que são muito do Brasil, da nossa história de ancestralidade, da violência, da miscigenação, enfim. Tem o fato de um casal interracial, o fato da busca por um pai, acho que são referências muito brasileiras.
Eu acompanhei o filme também em São Francisco, nos Estados Unidos. Foi a estreia da América do Norte, e eu fui representar o filme. É um festival queer, então foi muito interessante também observar o tom que o filme ganha com o público queer, e como rola uma identificação.
Estrear no Brasil, é conversar com a nossa gente, com o nosso povo. É um mix de nervosismo, alegria e ansiedade pra dar conta dessa segunda estreia. Ontem foi um dia muito emocionante, e eu fiquei feliz com a recepção do filme, com o pouco que eu troquei entre ontem e hoje com as pessoas. Onde tocou, o que pega, enfim, é um momento muito esperado por mim e pela equipe inteira.
Acho que a primeira parte, que retrara esse crime ambiental [o filme se passa após o rompimento da barragem em Brumadinho], e, depois do que passou aqui no Rio Grande do Sul, o filme ganhou outra dimensão. Fiquei muito emocionada na sessão ontem, chorei pela primeira vez assistindo ao filme, acho que redimensionou a primeira parte do filme e a segunda também, porque são debates que a gente precisa inaugurar aqui no Brasil, sobre outras possibilidades de existências no cinema.
É um filme carregado de simbologia em cena, mas também na pós, especialmente na sonoplastia. Na construção do seu personagem, o que vocês incorporou que não está na tela ou no roteiro, para além do que está dito?
Mirella Façanha: A Ju é uma roteirista exemplar, e quando eu li o roteiro, eu fiquei muito emocionada. A Ju também é montadora. Ela não monta os filmes dela, mas ela também é montadora, e eu acho que isso tá muito impresso em como ela escreve o roteiro. Você visualiza o filme quando você lê, é muito bonito, então tem muitas indicações de som. O filme se constrói; as duas partes se constroem e se unem por várias camadas, pela fotografia, pelas imagens das mãos, pelo céu, por falas que se repetem na primeira parte e na segunda, e muito pelo som. Eu admiro muito o trabalho do Tiago e da Rita [da equipe de som], já há muito tempo. É um sonho estar num filme com eles, e acho que eles constroem essa atmosfera de uma maneira inexplicável. Para um filme de gênero, o áudio é muito importante. Durante o processo de construção de personagem, eu usei muitas músicas e muitas sonoridades e frequências pra chegar num estado onde a Flávia, minha personagem, é uma pessoa muito silenciosa, com poucos momentos longos de fala. Ela é uma personagem que acontece muito pelo olhar, então, a construção passa muito pela sonoridade.
Minha construção de personagem vem a partir da dança e de práticas somáticas, de fisicalidade. Eu costumo construir personagens pelo psicológico, que foi um encontro muito bom com a Juliana, porque ela também tem um lugar forte. A Ju, quando me apresentou a Flávia, me disse: essa personagem é como um vulcão coberto de neve.
Eu gostaria muito que, no filme, as pessoas fossem convidadas a mergulhar dentro da Flávia pelo olhar, como um convite magnético. Ela não é uma personagem que vai até lá, ela não caminha na direção do interlocutor, ela convida a entrra dentro da cabeça, do processo de enlouquecimento que ela vive.
Um dos temas do filme, além do luto, é a incerteza do futuro. Você construiu um futuro desta personagem?
Mirella Façanha: Eu sou sagitariana, sempre com uma flecha apontada pro futuro, ainda sem saber como o futuro é. Eu acredito muito que o tempo linear, ele é uma grande ficção colonial que não dá conta da nossa existência, do passado, do presente e do futuro… A professora Leda Martins fala sobre isso, e é uma maneira que eu enxergo a vida.
Neste trabalho isso casou, é uma personagem que tá tentando resgatar, está em retomada de um passado, desse pai que não existe mais em terra. Ela fica ali a partir das coisas do pai, da casa, tentando entender quem foi esse cara, pra viver esse luto. Eu vislumbro ali que é um futuro de aproximação dela com ela mesma. Quando uma personagem negra, numa relação interracial, consegue dizer pra sua companheira, “eu não preciso que você me salve”, ela inaugura no processo de vida dela a sua autonomia. É um processo que qualquer pessoa racializada que tá em diáspora vai ter que viver em algum momento. Quando a Flávia consegue dizer, eu não vou embora, eu vou ficar aqui, ela consegue desmistificar esse mito do herói branco. Talvez o filme termine no início do processo de racialização dela.