metropoles.com

A musa de Tarantino não era Uma Thurman, e sim Sally Menke

A falta da editora com quem o diretor trabalhou até “Bastardos Inglórios” pôde ser sentida em “Django” e, agora, em “Os Oito Odiados”

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Divulgação
1 de 1 Divulgação - Foto: null

Atenção: este post discute livremente todos os filmes de Tarantino. Spoilers!

A parte mais lembrada do cinema sempre foi e sempre será a que aparece na tela: os astros, as locações e a ação. Os únicos a se sobressaírem atrás das câmeras são os diretores e, mesmo assim, apenas um punhado seria reconhecido nas ruas. Alguns diretores de fotografia e talvez um ou outro compositor têm seus nomes mencionados em rodas de discussões.

Porém, entre as outras dezenas de cargos condenados à obscuridade dos créditos finais de um filme, uma categoria se destaca pela falta de reconhecimento: os editores, aqueles que pegam todo o material filmado e o transformam em uma narrativa artística coerente.

Várias parcerias entre diretores e “musas” são apreciadas na história do cinema, entre elas Pedro Almodovar e Penélope Cruz, Woody Allen e Mia Farrow, Federico Fellini e Giulietta Masina, Michelangelo Antonioni e Monica Vitti, os Irmãos Coen e Frances McDormand. Até o diretor mais pop de hoje, Quentin Tarantino, tem sua Uma Thurman, com quem realizou três de seus filmes (ela é até hoje a única atriz a ter um papel principal em mais de um deles). Thurman só perde para Sally Menke, que esteve com Tarantino em toda a sua obra, desde “Cães de Aluguel”, de 1992, até a morte dela, em 2010.

Sally editou oito trabalhos do diretor, contando dois segmentos de outros filmes: um capítulo do filme “Grande Hotel” (1995) e o segmento “À Prova de Morte”, de “Grindhouse” (2007). Parou em “Bastardos Inglórios” (2009) só porque faleceu um ano depois, aos 56 anos. Com os lançamentos seguintes de “Django Livre” (2012) e “Os Oito Odiados” (2015), já podemos analisar que a obra do diretor sofre sem ela.

A editora faz parte de uma longa tradição de mulheres editoras no cinema americano. Enquanto o machismo patriarcal impedia que elas dirigissem ou escrevessem roteiros de cinema, a bancada de edição esteve aberta pelo simples fato de que, para os donos de estúdio, editar um filme era como costurar roupa e essa era uma habilidade “natural” das mulheres.

A pioneira foi Dorothy Arzner. Em 1922, ela editou o filme “Sangue e Areia”, no qual estrelava Rudolph Valentino. Na era de ouro de Hollywood, os anos 1970, elas eram onipresentes. Steven Spielberg apelidou Verna Fields, que editou “Tubarão” (1975), de “mother cutter” (a referência bem-humorada ao termo “mother fucker” denuncia a dor do diretor quando compartilha seu filme com a primeira crítica: a tesoura que surge na ilha de edição).

Marcia Lucas, esposa de George, venceu o Oscar de melhor edição por “Guerra nas Estrelas” (1977). Martin Scorsese trabalhou com Thelma Schoonmaker em “Touro Indomável” (1980) e nunca mais a largou.

Um diretor cada vez menos contido
Falar mal de um filme de Tarantino é uma tarefa inglória. Ele se tornou um dos diretores mais interessantes de sua geração e seu pior filme é melhor do que toda a carreira de vários veteranos de Hollywood. Devemos, portanto, só compará-lo a ele mesmo. Revisitar sua obra completa, destacando “Django” e “Odiados” como uma fase “pós-Sally”, mostra que ele está cada vez menos contido, especialmente nos contextos de violência e verborragia.

O uso da violência em seus primeiros filmes sempre deixaram algo implícito — sua câmera não aponta para o momento em que Mr. Blonde decepa a orelha de um policial em “Cães de Aluguel” e nem perdura nas vítimas abatidas pelas balas de Vincent e Jules em “Pulp Fiction”. No “pós-Sally”, tudo se torna explícito e caricato — uma única bala da arma do Major Marquis Warren explode a cabeça de Bob em “Odiados”.

Balão de carne e sangue
Falando estritamente em cabeças, podemos até comparar a de Marvin, em “Pulp Fiction”, com esta de Bob. Quando Vincent Vega atira sem querer na cabeça de Marvin, lá em 1994, Sally coloca um plano de Travolta atirando e depois corta para o lado de fora do carro de modo que não vejamos a cabeça em si, mas a poça de sangue que se espalha. Agora, em 2016, vemos a cabeça de Bob receber a bala do assassino e explodir como um balão de carne e sangue.

Sua tendência para a violência explícita se consolidou ao longo dos anos, aparecendo pela primeira vez em “Kill Bill”. Jackie Brown mantém suas mortes off screen e sem sangue, mas a vingança da noiva é sangrenta e detalhada. Interessante observar que, enquanto no primeiro volume da saga assistimos uma carnificina desenfreada, no segundo volume, a noiva não mata ninguém. Até o notório Bill tem um final sentimental, decidindo por ele mesmo dar os cinco passos que o levaram à morte.

Cabeça estourada e orgia de sangue
“À Prova de Morte” é sádico, com as quatro primeiras mulheres que Stuntman Mike assassina. A morte dele é o primeiro exemplo de cena com uma cabeça explicitamente estourada (mas Sally a mantém por uma fração de segundo). “Bastardos Inglórios”, sim, termina numa orgia de sangue onde o rosto de Hitler é metralhado. Observamos uma linha crescente, mas que, depois de “Bastardos”, atingiu o nível da caricatura. De tão intensa, parodia a si mesma.

Quem esperou uma jornada épica em “Os Oito Odiados” como a de “Django” deve ter se decepcionado um pouco ao saber que o novo filme era mais um mistério à la Agatha Christie, em uma única locação, do que o espaguete de Sergio Leone. Os oito personagens do título, e mais alguns, estão envolvidos em um jogo de gato-e-rato inicialmente verborrágico e finalmente violento, para descobrir quem está do lado de quem.

E quanta verborragia. Desde 2012, o ritmo dos filmes de Tarantino funciona discurso após discurso, a ação e o enredo sobrevivem apenas como uma transição entre monólogos. No fim, todo mundo morre e sobram dois.

Mudança de ritmo
Sei que Tarantino ficou famoso por seus diálogos e todos os seus filmes são repletos de discursos. Mas o ritmo é diferente. Eles não são chatos ou excessivos. Nos roteiros desses longas, há cenas e diálogos que se transformaram em cenas nas telas. Provavelmente, não passaram pelo crivo de sua editora, com quem ele admite que “reescrevia os roteiros originais na montagem”.

Agora, Tarantino não tem quem o contenha, está totalmente livre para fazer o que quer. Nos tempos de Sally, ele tinha alguém em cujas críticas confiava. Tarantino contou ao jornal Variety, numa premiação de editores em 2007, antes da morte de Sally: “As melhores colaborações entre diretores e editores são quando eles completam as frases um do outro.” Ele declarou que Sally era sua “única colaboradora de verdade”. É difícil imaginar que ela não teria cortado os minutos excessivos dos dois últimos trabalhos do diretor.

Penso aqui, por exemplo, em duas cenas de “Django” que mereciam corte. Na primeira, membros da Ku Klux Klan passam um tempão discutindo a confecção de suas máscaras. É hilária, mas que não adianta em nada para a história ou para a trajetória de Django. Na segunda, King Schultz relata o conto de fadas de Broomhilda e Siegfried. É redundante, pois a história que Django viverá é exatamente igual (bastaria apenas lembrar Tarantino que ele já deu o nome Broomhilda para a esposa de Django).

Excesso de diálogo expositivo
“Os Oito Odiados” tem vários personagens que se reconhecem e passam vários minutos contando aos outros personagens e ao espectador, quem eles são. O excesso de diálogo expositivo é absurdo ao ponto de merecer um meme. Além disso, o Major Warren conta uma imensa e vagarosa história pra dizer que sempre lembrou do gosto da comida de Minnie.

Em um paradoxo absurdo, Warren revela que suspeita da presença de Bob no recinto por ele ser mexicano. E Minnie, afinal, não tolerava mexicanos dentro de sua loja. Minutos depois, em um flashback, vemos Minnie receber os quatro assassinos, incluindo o mexicano, na maior felicidade. Em um devido momento, após mais de duas horas de filme, o Major Marquis Warren literalmente fala: “Vamos todos nos acalmar e ir mais devagar!” A falta que Sally Menke faz.

Como um epitáfio para alguém que está há tanto tempo sem o reconhecimento que merece, nada melhor que os vídeos de set nos quais, para se divertir, Tarantino pedia que seus atores mandassem mensagens para Sally no meio de suas cenas, principalmente na forma de um “hi, Sally!”

Para perfis de cinco editoras de destaque na história de Hollywood leia “5 Editors that Broke the Hollywood Studio System”

Para melhor compreender a tarefa de um editor, assista o documentário “The Cutting Edge” no YouTube

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comEntretenimento

Você quer ficar por dentro das notícias de entretenimento mais importantes e receber notificações em tempo real?