Cannes: Les Filles d’Olfa, de Kaouther Ben Hania
Em mais de uma década de Festival de Cannes, nunca vimos um meta-documentário como este.
atualizado
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Documentários não seriam tão raros na seleção de filmes do Festival de Cannes se toda a indústria cinematográfica admitisse que tudo apresentado numa tela de cinema é ficção. Ou pelo menos, na tentativa de se aproximar arte de realidade, que tudo não passa de ´versões´. No centro de “Four Daughters” estão cinco mulheres: todas baseadas em pessoas reais, mas duas são interpretadas por atrizes, duas são interpretadas pelas mulheres em que se baseiam, e uma é interpretada, ora por atriz, ora pela mulher real em quem ela é baseada. Confuso? O filme vai revelando tudo aos poucos, mesclando toda essa confusão sobre o que é real e o que não é.
Olfa (a real e a interpretação), é mãe de quatro filhas, todas adolescentes. Só que perdeu duas. Seu caso ganhou o noticiário, mas como tudo aconteceu na Tunísia, há pouca chance de espectadores brasileiros conhecerem a história. O que a diretora Kaouther Ben Hania quer explorar são os eventos que levaram a esta perda e também suas ramificações. “Explorar” talvez seja o termo certo, pois a proposta é re-encenar conversas e discussões, com as personagens reais, que levaram aos fatos. O que acontece em cena é frequentemente desconfortável, como o choro das duas irmãs que ficaram, Eya e Tayssir, quando encontram pela primeira vez as atrizes que interpretam suas outras irmãs, Nour Karoui e Ichraq Matar.
Talvez o destino de Olfa sempre fosse trágico. “Eu odeio meninas, nunca quis filhas,” ela diz, em um momento difícil, e mesmo assim teve quatro. Filha de um pai distante e fisicamente abusivo, foi mal-tratada por todos os homens de sua vida, inclusive o marido, que ela chegou a banir do leito matrimonial. Uma escolha interessante da diretora é que todos os personagens masculinos, são interpretados por um só ator: Majd Mastoura. Quando Eya e Tayssir são perguntadas sobre as próprias infâncias, também relatam episódios de surras e xingamentos. O ciclo de criação, aonde filhos repetem os comportamentos dos pais, por pior que sejam, não deixou Olfa ilesa.
No mesmo instante em que o documentário tenta uma terapia radical com seus personagens, também escancara a ilusão de representação real que o cinema pretende. Olfa desenvolve um relacionamento interessante com a atriz que a representa, Hend Sabri, que vira confessionária. O processo todo também pesa nos atores, que conversam sobre a experiência entre si (e sob o olhar da câmera).
O maior problema do filme é que o experimento falha. Não é possível descobrir por que Ghofrane e Rahma se perderam. Claro que esta impossibilidade já se apresentava a todos os participantes, mas o filme apresenta uma narrativa aonde algo de novo será descoberto. O que encontramos é algo mais vago–o retrato da vida de uma mãe e um experimento terapêutico que importa mais para estas mulheres do que para o espectador.
Avaliação: Ótimo (4 estrelas)