Arte transformadora: quatro iniciativas culturais na Estrutural
Grupos teatrais, coletivos de hip-hop e orquestra juvenil movimentam a cena da região que tem uma das menores rendas per capita do DF
atualizado
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A Cidade Estrutural, muitas vezes apresentada aos demais brasilienses apenas pelos altos índices de criminalidade e carência de políticas públicas e sociais, também está repleta de talentos. Lá, moradores encontram no viver cultural o caminho para superar as dificuldades, mudar mentalidades e, sobretudo, oferecer oportunidade a jovens que sonham vencer na vida por meio da arte.
A Estrutural – que, segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), tem renda per capita de 0,4 salários mínimos – é a face mais perversa da concentração cultural que domina Brasília. O Plano Piloto possui a maior parte dos museus, teatros, espaços públicos dedicados à arte da cidade: deixando regiões administrativas sem o devido acesso à cultura.
Na tentativa de reverter esse quadro, artistas empenham-se na formação de público e de agentes culturais da região com o maior índice de desigualdade social do Distrito Federal, de acordo com o último estudo realizado pelo movimento Nossa Brasília em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2016.
Projetos como o Instituto Reciclando Sons, as companhias teatrais Cutucart e Bisquetes e o coletivo de hip-hop formado por rappers e o b-boys têm ressignificado os espaços públicos da cidade. Durante todo o ano, a Estrutural é transformada em palco para a realização de saraus, espetáculos cênicos, shows e oficinas, entre outros.
Reciclando vidas…
Idealizado pela educadora Rejane Pacheco, 40 anos, o Instituto Reciclando Sons utiliza a música como instrumento de educação, ressocialização e inclusão social desde 2001. “Fiquei impressionada pela realidade das pessoas daqui e senti a necessidade de fazer algo. Eu andava insatisfeita com minha vida profissional, achava o mercado muito elitista, sem perspectiva de agregar valores humanos”, lembra a musicista, formada em canto e violino, pela Escola de Música de Brasília, e regência, pela The George Washington University, nos EUA.
O que começou de maneira modesta, com aulas de musicalização infantil para 22 crianças, transformou-se num poderoso programa educacional premiado e certificado pela Fundação Banco do Brasil, em 2013.
“Eu tinha muita dificuldade de conseguir que professores aceitassem vir dar aulas aqui na Estrutural, por puro preconceito mesmo. Então desenvolvi um plano de educação para formar os próprios alunos e eles assumirão a continuidade da escola”, explica Rejane.
Em 17 anos de existência, o programa já atendeu mais de 3 mil pessoas que tiveram contato com a música clássica pela primeira vez. Além da educação básica extracurricular – onde aprendem a tocar instrumentos, como violino, violoncelo, contrabaixo e têm aulas de canto erudito e popular – o Instituto prepara os moradores da Cidade Estrutural para o exame da Ordem dos Músicos do Brasil.
Os estudantes que se formam no ensino superior ou aqueles com aptidões voltadas às atividades de apoio são contratados para o quadro de funcionários do Instituto, iniciativa que gera renda e emprego à população local.
Da Estrutural para Roma
As conquistas de Damon Erick Pacheco, 21 anos, são inspirações para os demais alunos do Reciclando Sons. Nascido no Maranhão, Damon chegou à Estrutural ainda criança, acompanhando a mãe, costureira, na busca por uma vida melhor. Aos 14 anos, passou a frequentar o instituto musical, onde descobriu sua verdadeira vocação. “Minha família sempre teve muito contato com a música, cantávamos na igreja. Minha mãe sempre ficava orgulhosa quando eu tocava violino nos cultos e as pessoas me elogiavam”, afirma o músico.
Entrar para o Instituto mudou minha autoestima. Eu era uma pessoa muito tímida, não falava com as pessoas. As aulas de violino foram minha terapia, aqui encontrei um refúgio e a solução de muitos problemas. Hoje eu sou professor e não tenho vergonha de falar em público. Encontrei minha vocação
Damon Erick Pacheco
Em 2016, Damon e o colega de classe Arthur dos Anjos ganharam uma bolsa de estudos para aperfeiçoar técnicas na Orquestra da Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma, na Itália. “Só quando entrei no avião e ele começou a decolar foi que realizei a mudança na minha vida. Quando eu imaginaria ir tão longe na música?”, questiona Damon.
O jovem passou quase três meses em uma maratona de ensaios, onde teve aulas de violoncelo com professores renomados do país. “Fiz muitas amizades, pude vivenciar uma realidade totalmente diferente da que eu estava acostumado. Foi a experiência mais enriquecedora da minha vida. Minha meta agora é oferecer essa oportunidade a outros jovens da minha comunidade”, ressalta.
Dramaturgias autorais
Criado em 2006 por moradores da Estrutural, que, por falta de equipamentos público, viam-se obrigados a estudar no Centro Educacional 1 do Cruzeiro, o grupo Cutucart movimenta a cena teatral de uma das regiões mais pobres dos Distrito Federal. O coletivo apresenta textos de grandes autores, por exemplo, Martins Pena, Arthur Azevedo e Alcione Araújo.
“Nós nos descobrimos enquanto artistas aqui na Estrutural, porém, durante muito tempo, a cidade não tinha investimento e infraestrutura para que trouxéssemos o fruto do nosso trabalho para cá”, considera Bia Oliveira, 25 anos, uma das integrantes do grupo que levou espetáculos autorais, como Cor de Amor(a), Naquela Estação e Seca, a festivais de teatro de diversos estados brasileiros.
A Estrutural é um berço de artistas desconhecido de muitos. É bom ver que agora a cidade está com um movimento cultural muito forte, com vários coletivos sendo valorizados
Bia Oliveira
Formado por Wanderson de Sousa, Lucas Isacksson, Izabella Beatriz, Iury Persan, Bia Oliveira e Analu Rangel, a Cutucart dispõe de apoio das políticas de amparo à cultura para oferecer oficinas de teatro gratuitas à comunidade. O curso tem duração de cinco meses e conta com certificação e apresentação de um espetáculo no encerramento da temporada.
Rimas de resistência
Liderado pelo vocalista Marcelo Paulysta, 32 anos, o coletivo de hip-hop Port Illegal Rappers é o principal representante da cultura do gueto na Estrutural. Vindo do interior do estado de São Paulo, ele chegou ao Distrito Federal aos 16 anos. “Eu já ouvia rap, era fã dos Racionais MC’s e Facção Central, pois lá esse é um movimento muito forte, mas foi aqui que me engajei profissionalmente no estilo”, garante.
Apesar de tratar em suas letras das vulnerabilidades da região onde mora, Paulysta faz questão de mostrar que a arte também é um ponto forte do local. Somando todos os singles, o Port Illegal Rappers ultrapassa meio milhão de acessos e vê na visibilidade uma maneira de beneficiar a cidade. “Nós levamos o nome da Estrutural para fora do quadrado, ajudamos a fortalecer a capital na cena hip-hop nacional e isso é muito massa”, completa o artista.
Dentro das expressões do hip-hop, a break dance foi a escolhida por Rogério, 19 anos, conhecido nas quebradas como Jherio Break. “A dança de rua é periférica, é resistência, me fez sentir orgulho da minha ancestralidade”, ressalta o b-boy.
Integrante do coletivo Port Illegal Rappers, o dançarino divide seus dias entre o curso profissionalizante de pedreiro na Fábrica Social, os ensaios dos grupos Furious D e Pegada Black e as aulas de dança urbana, que ministra para crianças da Associação Viver, na Estrutural. “Dançando a gente consegue expressar nossas emoções. Tento ensinar o valor dessa arte tão nossa”, pondera.
Willian Monteiro, 21 anos, mora na Estrutural há 14 anos e vê no rap uma maneira de burlar “o sistema de opressão que marginaliza o povo negro”. O MC organiza a Batalha da Estrutural e coloca em suas letras histórias reais e cotidianas sobre a violência local.
Realizada há três anos, a Batalha de MCs da Estrutural é um dos eventos culturais mais antigos da região. Todas as quartas-feiras, às 20h, na Praça Central, os rappers da cidade participam de duelos de rimas. São dois rounds e, em caso de empate, uma terceira e decisiva etapa é realizada. Ao final, a plateia e dois jurados elegem o vencedor, que leva para casa a Folha de Campeão. “É uma espécie de ata contando que uma guerra aconteceu ali. Uma luta sem armas só com rimas”, explica Aggin.
Vi um jovem ser assassinado na minha rua, estávamos cantando com as crianças e me lembro de vê-las correndo, assustadas. Eu canto essa realidade, pois é minha maneira de ser resistência em um país que tem uma dívida histórica com a gente, mas não quer pagar
Aggin
Desmistificando a comunidade LGBT
Na criação coletiva da Companhia de Teatro Bisquetes, os esquetes – peças cômicas de, no máximo, 10 minutos de duração – ganham temática relacionada aos direitos humanos e à cidadania. “A gente utiliza a nossa arte como instrumento para romper preconceitos e a discriminação sofridos pela comunidade LGBT”, explica Fábio Willian, 23 anos, um dos fundadores do grupo integrado por Tatiane do Santos, 23 anos, Tainá Caminho, 29, e Ariel Melo, 22 anos.
Formado há quatro anos, o grupo teatral ocupa os espaços públicos da Estrutural com “arte, educação e resistência”. Os espetáculos são encenados, gratuitamente, em pontos como a Praça Central ou no meio das quadras residências. “A falta de apoio dificulta muito o nosso trabalho, mas nunca foi um impeditivo”, reforça Tatiane dos Santos, integrante que cede a própria casa para os ensaios.
O grupo enfrenta dificuldades de falar sobre sexualidade em uma cidade com grande número de igrejas evangélicas – 46% da população local professa a fé protestante. “É um desafio, mas a nossa arte é ferramenta para levar entendimento para essas pessoas. Diante desse cenário, a gente não se cala, optamos por enfrentar e ultrapassar esses desafios”, afirma Ariel.
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