Um Natal em que a Justiça tangencia a compaixão, a empatia e o amor
Às vezes “deixar por menos” não significa desistência, mas o ápice da valentia, que muitas vezes significa simplesmente encostar as armas
atualizado
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Este texto, diferentemente dos outros, não vem falar da Justiça nem de justiça – pelo menos não a dos humanos. Fala, para mim, de algo muito maior: quando a justiça já não interessa tanto porque você se flagra apostando muito mais em coisas como a compaixão, a empatia, o amor – inclusive, se for o caso, em oposição ao que se considera mais justo. Se a abordagem pode parecer estranha a uma juíza, não tinha como ter mais a ver com essa véspera de Natal.
A expressão “deixar por menos” nem muito existe no afirmativo. Muito mais comum é a negativa “não deixar por menos”. É que ninguém deixa por menos, a não ser mané.
Quando algo te acontece e você se vê cheio de possibilidades de exigências, o certo é correr atrás de justiça, acertando as contas com tudo e todos. Na nossa era dos direitos, é o que se prega a torto e a direito e o que se ensina às crianças.Não sem razão. A opressão e submissão que sempre tanto correram soltas por aí nas arenas individuais e coletivas da vida, essa falta de fala e de ouvidos tão persistente em tanto lugar, não poderia mesmo ter dado em outra coisa – e poder cobrar, reivindicar, exigir, seja numa passeata na Esplanada, seja numa DR com a mãe, seja no Procon ou dando um basta numa amizade, é um fruto bom.
Mas fico cá pensando comigo que esse ainda é um estágio intermediário. Que lá nas alturas da aventura humana o círculo se fecha, uma ponta se toca na outra, e quem deixa por menos não é mais o loser, mas, muito pelo contrário, aquele que se ilumina e ilumina. A virtude, virtude da pesada, aqui não me parece estar no meio.
Deixar por menos não por se encolher, mas por ter se expandido tanto que se passou a prescindir do terreno do outro. Não por covardia. Não por preguiça, não por submissão, mas pelo ápice da valentia que muitas vezes significa simplesmente encostar as armas.
Deixar por menos, porque estar certo não te interessa mais tanto, ganhar não te interessa mais nada. No seu radar manda sinais apenas uma paz, grande e esquisita paz, porque sem anúncios e sem voz mesmo – e isso não terá nada a ver com o medo, meu dileto Rappa.
Deixar por menos é um quintal ensolarado. Solitário, sim, um pouco, talvez menos animado, mas de uma alegria tão pura que ofusca. Ando espiando ultimamente esse quintal. Vez ou outra boto meus pés nele, começo a ensaiar uma brincadeira qualquer, mas tem sido rápido, tem sempre alguma fome me chamando para almoçar
Deixar por menos é mimo do amor. Esse amor Coríntios, bíblico, que sempre soou para mim meio flagelado demais, mas que foi a quimera que me sobrou de uma década de franciscana. E, muito loucamente, por um caminho bem inverso, é o que vem me sobrando depois de uma década de análise na batida da desconstrução dos certos e dos errados – os direitos –, dos bons e dos maus – isto é, os credores e os devedores dos pretensos direitos.
Ousado, ousadíssimo, dizer coisa assim, ainda mais trabalhando com justiça (ou com a tentativa de aproximação da). Mas pode ser também que exatamente por estar neste ringue o paradigma venha ruindo para mim. Para continuar acreditando nele, só em dias em que acordo muito prática e ruim da vista. Porque dar a cada um o que é seu é lindo, mas só até ali, até a borda, a exata borda do que pode ser mesmo gigante em alguém: parar de fazer contas, deixar o troco pro outro. E ir brincar.
Difícil de entender, impossível de concordar? Deixe-me por menos.