Que despertem as mulheres todas
O meu desejo a todas as mulheres, e a mim mesma, é que não sejamos interrompidas, aparteadas sem fim, que não tenhamos nossas vozes abafadas
atualizado
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Tinham sido casados e ele dizia que ela ainda lhe devia uma quantia que tinha pegado emprestado – algo assim, já não me lembro tão bem.
Estava nervoso e era uma pessoa de fala bem agressiva – notava-se rápido.
Eram quatro mulheres na sala (eu, a ex-mulher dele e as duas advogadas) e o homem que, àquela altura, já estava aos berros.
Eu pedia para ele, por favor, que moderasse a fala e se acalmasse. Ele diminuía o tom de voz um minuto e depois voltava a subir. Eu pedia mais uma vez e mais alto. Ele diminuía de novo, restabelecendo a gritaria em menos tempo ainda. Fazia minhas perguntas e ele falava por cima de mim. As advogadas tentavam intervir e ele ou as ignorava ou também sobrepunha sua voz de homem, naturalmente mais grave e alta, às delas. A ex-mulher o tempo todo muda (há quanto tempo?).Esse tipo de situação é tristemente comum. Como juíza, mulher, e de tom de voz mais para baixo, passo muito pela situação dos advogados ou partes, quando homens, interromperem sistematicamente a minha fala. Uma, duas, 10 vezes. Ou falarem junto comigo, abafando o que estou dizendo.
Tento me impor, abrir espaço, e o fato de estar na presidência do ato me ajuda, mas me faz ver ao mesmo tempo o tamanho do problema. Porque se isso acontece ali, em um ambiente formal, comigo de toga e presidindo a audiência, imagine o que não acontece em casa, na rua, no trabalho. Aliás, não imagine. Se você for mulher, sei que sabe sem ter que forçar nenhuma memória
Sempre me vem à cabeça, nessas horas, o comentário da ministra Cármem Lúcia [presidente do Supremo Tribunal Federal], ano passado, em plena sessão do STF, ao ter de resolver a quem dava a fala, se a um dos ministros ou à ministra Rosa Weber. Ela, muito calma e muito “mineira”, conta então de uma pesquisa feita com ministras de cortes constitucionais de todo mundo em que fora constatado que as magistradas eram, em média, 18 vezes mais aparteadas do que os ministros. Em tom jocoso, mas certeiro, a ministra ainda completou que lá no Supremo elas [Cármen Lúcia e Rosa Weber, juntas na imagem em destaque] não eram tão aparteadas assim porque simplesmente não as deixavam falar. Vale conferir:
A mulher ter a voz encoberta assim, literalmente, é muito simbólico e sintomático. Foi Dia Internacional da Mulher na quinta-feira (8/3) e, de todas as muitas mensagens que vi por aí, uma me deu, logo de manhã cedo, o resumo do meu maior desejo às mulheres, e a mim mesma. É um vídeo no qual uma voz linda de mulher fica repetindo, cantando à capela, em espanhol, a frase “que despierten las mujeres todas”.
Ou seja, não que façam isso ou aquilo, não que deixem de fazer isso ou aquilo, mas que despertem, que tenham voz, que não sejam interrompidas, que não sejam aparteadas sem fim, que não sejam abafadas. Porque, como segue a música dizendo, se despertarem as mulheres todas, elas recuperam seus grandes poderes. E eu acresço: não só os poderes delas, mas do mundo todo, até e inclusive, quem sabe, da Justiça.