E se palavras “bem-ditas” curassem mais do que uma sentença?
Precisamos matar o conflito para não seguir no impasse, mas viver sem impasse está longe de viver em paz. É preciso alcançar a cura
atualizado
Compartilhar notícia
Escrever uma sentença, apesar de ser o ponto ápice do nosso trabalho, comumente é pouco.
Uma sentença põe alguém na prisão, afasta do lar, despeja, fixa uma pensão alimentícia, decreta um divórcio – e de tudo isso precisamos para (male e male) funcionar no coletivo.
Mas as resoluções que uma sentença é capaz de dar, sabemos, costumam acontecer em um nível muito superficial do conflito.
Uma sentença até “mata” o problema, porque o torna indiscutível do ponto de vista legal dali para frente, mas raramente cura o que quer que esteja subjacente a ele. Precisamos matar o conflito para não seguir no impasse, mas viver sem impasse está longe de significar viver em paz. Para viver em paz a gente precisa de cura.
Alguns juízes que têm na alma uma janela a mais atinam uma hora para isso e buscam, sem arredar da sua função de “matadores de problemas”, colocar o pé mais longe um pouquinho, invadindo, com sua sensibilidade, sua disponibilidade e sua ousadia até o terreno de uma possível cura.
Hoje o que me traz a essa coluna é exemplo disso. Uma juíza do Paranoá que, ao lado ali das suas audiências, decisões, sentenças, usa nos seus casos como arma a poesia, o lirismo. Esse feixe da experiência humana que não raro vira chaves de uma pessoa inacessíveis a todo resto.A menina de 15 anos sofria abuso sexual do padrasto. Numa das vezes, ele chegou a bater com a cabeça dela contra a parede três vezes violentamente. De outra vez, esmurrou-lhe o rosto porque ela tinha perdido R$ 10. A mãe, que era a única testemunha desses fatos, omitiu tudo em audiência, inclusive que ela própria era vítima de violência doméstica do marido.
Ela, a juíza, como me contou depois, ficou tonta. A imagem da cabeça da adolescente sendo golpeada na parede por um homem tão maior não a largava. Era um daqueles casos que pegam na veia, perturbam, nos torturam no impasse e roubam a paz.
Entrou em sua sala logo depois da audiência e, de olhos vazios, enxergou um livro que tinha recebido de um servidor há uns 15 dias. No vácuo do momento, sem pensar muito, abriu o livro a esmo. E eis que salta a prosa de Fabrício Carpinejar “Não é amor” (texto integral abaixo).
Teve então uma ideia, uma pequena ideia. Não era uma solução pronta, imediata; não faria nenhuma revolução. Mas era uma tentativa, um caminho, uma vela que podia ser acesa naquele breu gigante da violência doméstica – mesmo uma vela infinitamente menor que a espessa escuridão, ao seu redor, é capaz de iluminar quem chega perto.
Ela daria aquele texto para todas as mulheres vítimas que aparecessem na sua vara. Mandaria imprimir folhetos – e mandou. Pediria para as vítimas o lerem – e pede. Assim é. Ninguém passa por lá sem levar para casa o folheto como dever de casa. Escreveu para o escritor e contou tudo. Ele, emocionado, logo respondeu autorizando o uso de seu texto para aqueles fins.
Por causa de mais um estupro, por causa de mais uma cabeça socada em uma parede, talvez alguns estupros e algumas cabeças andam sendo poupadas (como contabilizar?) pelo efeito não de algemas, não de celas, não de penas, mas simples e bem sentidas e “bem-ditas”… palavras!
Aqui as divido com vocês:
NÃO É AMOR – Fabrício Carpinejar
Por que ela não conta? Por que ela não presta ocorrência na delegacia?
Todos acham um absurdo apanhar e não revidar publicamente.
Não é fácil se separar. Não é simples para muitas mulheres denunciar o companheiro.
Eu entendo a vergonha de quem suporta maus-tratos em casa.
A humilhação de apanhar do marido. De receber tapa ou empurrão e guardar para si. De levar soco ou pontapé e cuidar dos hematomas em sigilo.
Ninguém tem ideia de como essas pessoas sofrem.
Sofrem pela dor física, mas sofrem ainda mais pela esperança de que um dia seu homem vai se recuperar. E isso não acontece.
As mulheres que aguentam violência doméstica são solitárias. Absurdamente sozinhas. Loucamente desamparadas.
Perdem a paciência e a tolerância de quem poderia salvá-las.
Elas se isolam dos amigos, pois não têm mais coragem de disfarçar as histórias.
Elas se distanciam dos familiares porque nenhum parente admitiria a hipótese sequer de um insulto.
Morrem socialmente: enterradas vivas em suas próprias residências.
Apesar do calor excessivo, não podem usar vestidos e mangas curtas para não ostentar as feridas e os inchaços. Acordam de óculos escuros para se encarar no espelho.
Colocam sua maquiagem a reparar os danos noturnos.
Para os colegas, estão constantemente caindo da escada e tropeçando nos móveis.
Para os filhos, fingem que não choram com um sorriso que não mexe nem as rugas.
Elas mentem no lugar do agressor. Mentem pelo medo de não ter outra chance de ser feliz.
Dedicam suas horas a zelar por uma farsa, a proteger um conto de fadas que existe na aparência, tentando salvar o casamento a qualquer custo.
Festejam as semanas sadias como milagres. Saúdam os momentos calmos como férias. Esmolam olhares de ternura para compensar o inferno.
Eu entendo as mulheres agredidas. Entendo, e dói entender.
É uma espiral de constrangimentos, que abole as defesas, que apaga a personalidade, que anula o temperamento.
São frágeis, quebradiças, carentes.
Atravessam um domingo inteiro procurando uma desculpa para continuar.
São as únicas que não enxergam que terminou o relacionamento, que não há jeito de recuperar o respeito.
Não são apenas cegas de amor, porém também surdas e mudas. O amor roubou todos os sentidos, todo o sentido de suas vidas.
Juram que foi uma exceção quando é a terceira ou quarta vez que a discussão desanda em briga.
Invertem a perspectiva do mundo: a tranquilidade é a exceção em sua rotina e se enganam que é a regra.
Juram que o marido não é violento, que há muita pressão do trabalho, que é efeito da bebida.
Explicam e justificam e argumentam o impossível, naquela mania de se convencer da pobreza para aceitar a miséria.
Ele se arrepende, ele chora, ele promete que não fará de novo, ele se ajoelha, ele manda flores, mas será reincidente.
Para essas mulheres que resistem em segredo, só tenho uma coisa a dizer: quem bate uma vez baterá sempre.
Apanhar por amor jamais melhora o amor.