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Dona Carlota e seu olhar de entrega preencheram uma sala de audiência

Aos 92 anos e “perfeitamente lúcida”, moradora da Vila Planalto chegou à Justiça com uma dívida de aluguel e em rica sintonia com o filho

atualizado

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1 de 1 close up of senior woman face and eye - Foto: IStock

Dona Carlota tem 92 anos. Chegou à audiência exageradamente arrumada: blusa de renda fechada no colarinho com colar de pérolas por cima e brincão até o ombro. Um sobretudo desconectado com a temperatura me deu a dizer da desconfiança de alguém de que à tarde choveria.

Por que já começamos a falar mais alto e mais articulado com as pessoas bem mais velhas (e com estrangeiros também, como uma amiga minha americana que morou aqui sempre me dizia)? “Bo-a tar-de, do-na Car-lo-ta, a se-nho-ra me ou-ve bem?” – falei, subindo uns três tons o volume da voz. Ela me responde feito uma adolescente: “Perfeitamente. Não tenho problema de audição e sou totalmente lúcida.”

O filho sessentão a acompanhava e cuidava dela com excessos, com os quais ela não parecia se incomodar, ao contrário. De mãos dadas durante toda a audiência, ela olhava para ele com uma tal doçura e dependência que a senhora-adolescente “sem problema de audição e totalmente lúcida” parecia estar ali só quando se dirigia a mim.

Esse olhar dela para ele me sequestrou na hora – e segui no automático o resto da audiência, tentando não fazer muito barulho para ouvir o que ele, o olhar, estava querendo me dizer, porque queria.

Algo nele me era muito familiar e não demorei para atinar que minha avó, também já com mais de 90 e Alzheimer avançado, olhava exatamente assim para minha mãe nos últimos tempos dela. Um olhar de bebê, de entrega total, de “faça tudo o que ela disser porque ela me tem nas mãos, e eu confio, e eu entrego, e eu amo”.

Muita coisa me comoveu flagrando novamente esse olhar, mas, para falar da primeira (e essa coluna de hoje vai sendo também, como eu, sequestrada por dona Carlota e ficando longe de qualquer questão jurídica), eu diria que é a inversão dos papéis o que mais me toca. É ver aquele ser já no fim da sua estrada e pensar que um dia já foi o contrário: era ela quem tinha aquele homem grande no colo, pequeno, diminuto, dependendo vitalmente dela e de seus braços, desde o primeiríssimo instante de vida, quando tudo devia ser só susto e absurdo para aquele serzinho. Dona Carlota estava nitidamente assustada e devia estar achando aquilo tudo meio absurdo, mas seu filho a situava, era o seu endereço na vida.

Caminhamos, descaminhamos e caminhamos de novo muito mais e então um ciclo pode se fechar: a adulta que guiou a criança se refugia no adulto que a criança virou para se tornar então a sua criança, com a mesma entrega, quase desesperada, do início do tempo dos dois, quando era quem recebia e dava.

Dona Carlota e seu filho são bastante humildes. Passamos algumas horas discutindo o aluguel de um quarto na Vila Planalto, onde moram os dois sozinhos. Fechamos um acordo de pagamento de atrasos que não pôde passar de R$ 100 por mês. Mas, por outro lado, são abastadíssimos. Não sei nada daquela dupla, a não ser que devem aluguel e chegaram na Justiça à beira de serem despejados, mas a força daquele laço, a mesma força que tinha vestido na senhora todos aqueles enfeites, rendas e quenturas, a força que fazia ela manear a cabeça daquele jeito, sempre concordando com ele em tudo que dizia, era bonita, não sei se rara, certamente rica. E se mostrava ali, em uma sala de audiência, quando deveria mesmo era estar impregnada numa poesia, pensava eu, ou em um quadro, quem sabe nos pés de uma bailarina, pois só a arte mesmo para dar conta desse sublime.

Na falta, ficam aqui registrados nessa coluna esse piscadela que, desde minha cadeira de trabalho, consegui dar nessa tarde nos ciclos da vida, nas mudanças de posição, nas riquezas pobres e nas pobrezas milionárias. E que, se pode à tarde (ou mais tarde) chover, melhor estarmos de mãos dadas com os nossos afetos, sejamos nós os que vão na frente ou não.

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