A história de um crime sem culpados e as tristes fatalidades da vida
A viagem da família Mendes terminou em tragédia depois que o mecânico de confiança, em um lapso, esqueceu de aparafusar uma roda na revisão
atualizado
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Há duas semanas, o telefone do trabalho tocou para me contar que nossa gata tinha acabado de morrer, atropelada por uma vizinha.
Corri para casa para tentar ser a primeira a dar a notícia à minha filha, de 9 anos, dona da gatinha. Lembrei, no caminho, de um caso que vivi na vara criminal de Planaltina e que, à época, me botou para pensar em culpas — em especial na necessidade que temos de achar, de qualquer jeito, um culpado para o que nos acontece de ruim.
Nas lidas da justiça, a gente esbarra nisso muitas vezes. Há muitos problemas que, apesar da gravidade, simplesmente não são atribuíveis a ninguém. São acidentes, são fatalidades. Acontecem.
E ainda há os danos que, apesar de terem origem na falta de cuidado de outra pessoa, não foram intencionais; quem provocou não queria tanto quanto quem sofreu, mas errou, calculou mal, enganou-se, distraiu-se. Aconteceu.
E fazer o que com a dor de ter sofrido aquilo? Com o que amarrá-la? Essa angústia solta, que não coloca nó no pescoço de ninguém, exige uma sabedoria às vezes bem rara.A morte de nossa gata e a minha vizinha – aliás, uma querida de uma vizinha – se encaixam na primeira hipótese. Sei que dirigia devagar e atenta, mas a gatinha, que tinha mesmo essa mania, cruzou a rua de supetão, não lhe dando tempo para reagir. A Nuvem ter morrido foi terrível, mas não há culpados. É o nosso dever de casa lidar com isso.
O caso da família Mendes em Planaltina foi desses em que a tragédia foi gerada pelo descuido de alguém, mas estava tão longe de sua vontade (“preferia”, como me disse depois, “ter morrido no lugar dessa menina”) que sentir raiva dele não fazia o menor sentido. A família sabia disso e acabou me ensinando, bem ali no meio de um processo, uma enorme lição.
Pai, mãe e duas filhas pequenas foram viajar de carro. Na véspera, o pai levou o veículo à oficina de um velho mecânico já há muito seu conhecido, que sempre o atendeu, para que desse uma checada no automóvel.
O mecânico é Seu Jarbas. Ele tem 80 anos e ainda está na ativa. Trabalha com carro desde menino e a oficina é não só o seu ganha-pão, mas de toda a família. Reconhecido na região pelo seu tino com a engenharia dos carros e sua forma correta de trabalhar, não lhe falta clientela. Mesmo com a idade avançada, nunca tinha pensado em parar. Até que.
Seu Jarbas revisou o automóvel, mexeu no que achou que precisava, e o entregou para o cliente. No dia seguinte, o motorista mal tinha entrado na BR e perdeu o controle do carro, vindo a capotar. Uma de suas meninas morreu na hora. A perícia descobriu depois que uma das rodas estava solta; alguém que a retirara esquecera depois de colocar os parafusos.
Veio um pedido de arquivamento do inquérito. Não me lembro mais bem o fundamento, mas imagino que a idade avançada do indiciado tenha influenciado. Eu concordava que não havia condições de seguir com o processo criminal e já estava arquivando o caso, quando tive um estalo e pensei na família Mendes recebendo a notícia do arquivamento, sem nenhuma palavra ou uma explicação prévia.
Resolvi chamá-los para uma audiência. Haveria o arquivamento, mas eu daria essa notícia a eles pessoalmente.
Chamei para a audiência também Seu Jarbas. Algo me dizia que esse encontro poderia ser importante para as duas partes. Além do mais, a notícia do arquivamento também lhe era do maior interesse.
Na hora “H”, me peguei bem tensa. Eu sabia que podia esperar a pior reação de uma família tão sofrida. Mas, para minha grande surpresa, aconteceu o contrário. A família – que compareceu inteira, inclusive com a filha sobrevivente que já era quase uma adolescente – disse não guardar ressentimento nenhum de Seu Jarbas. Sabiam que ele tinha errado ao esquecer de aparafusar a roda, mas, o que fazer? Ele não tinha feito por querer.
Seu Jarbas, acuadíssimo em um canto da sala até então, levantou a mão e pediu licença para se ajoelhar. Sem que eu tivesse reação, foi em frente e se ajoelhou, pedindo perdão e dizendo que não tinha conseguido mais ter paz. Queria paz, queria perdão. O pai da família não titubeou: levantou na hora e o ergueu do chão, terminando o gesto em um abraço. Mãe e filha se juntaram a eles. A juíza disfarçou (disfarçou?) as lágrimas.
Em audiências, é comum que acusações e culpas desfilem soltas na nossa frente. Culpas evidentes, culpas repugnantes, culpas doídas, culpas leves, culpas calculadas, culpas inventadas.
De vez em quando, o perdão também pede para entrar na sala e a gente vê todas essas culpas correrem assustadas porta afora.
Com menos “gente” na sala, todos respiram muito melhor.