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A falta da “bola de cristal” e o duro ofício do juiz em decidir

A lei guia o magistrado, porém os espaços para interpretação são vastos. E não poderia ser diferente, pois “a lei é morta e o juiz é vivo”

atualizado

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1 de 1 Juiz - Foto: ISTOCK

“Eu não tenho bola de cristal”, teria dito o juiz que concedeu liberdade ao homem que viria a ser o assassino da sua ex-esposa no dia seguinte. A fala do colega vem sendo hostilizada e recebendo alfinetadas da opinião pública na clara intenção de quererem atestar seu erro ao custo de uma vida.

Não conheço o processo – e nem que conhecesse poderia comentar alguma coisa. Conheço o colega e sua fama de ser um juiz e professor de direito excepcional, mas também isso não é o que mais interessa. Acho que vale a pena parar para pensar – e pensar coletivamente – a partir dessa fala do colega é o que ele acabou dizendo sobre a nossa profissão.

O risco está no cerne do exercício da magistratura. Nossa função é decidir. Decidir não é fácil – nem sobre a própria vida, imagina com relação à dos outros. Implica sempre em perdas e, como dizia, necessariamente em algum risco. O espaço de decisão para o juiz é sempre um espaço de angústia (“não temos bola de cristal”) e a trajetória inteira de uma carreira pode ser resumida como um treino no contorno dessa angústia com a entrega de uma produção: a melhor decisão possível (grife-se possível).

Porque decidir é preciso e a pessoa institucionalmente chamada para a tarefa é o juiz e a juíza; os impasses são sempre corrosivos, não raramente piores até que uma decisão ruim. A lei guia o magistrado, porém os espaços para interpretação são vastos – e não poderia ser diferente porque “a lei é morta, o juiz vivo”, como já coloquei aqui em outra coluna. Só uma pessoa pode tentar dar conta da complexidade dos fatos da vida de outra pessoa.

Um sujeito, e não um objeto (a lei), há de julgar. Ao julgar arrisca-se, sempre. Assim como todo cirurgião se arrisca ao fazer uma cirurgia ou todo piloto de avião ao decolar. Por mais cautelosa, ponderada e bem arquitetada que seja uma decisão judicial, há sempre a janela aberta para o pior desfecho, mas se ela é pouco provável (a partir da ciência, da experiência e do bom senso), e tem-se outros valores em jogo, faz-se a opção.

Deixar todos os que passam pelo sistema de justiça criminal presos, como o colega acrescentou à sua fala, não é factível, assim como não o é deixar de haver aviação civil ou não se operar mais ninguém. Seria certamente menos arriscado, mas nem se precisa dizer que o prejuízo é bem maior que o benefício da segurança. No todo.

No particular, se o risco, mesmo sendo pequeno, implementa-se, está-se diante de uma tragédia pessoal e o choque é inevitável, choque que, contudo, tem que resistir a se achar culpados. Parte da opinião pública não costuma ser boa nisso. Vão tentar achar culpados. Quer dizer, tentar não, já achar, no primeiro minuto, e com muita certeza, a parecer que a ela, sim, foi dada alguma “bola de cristal”.

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