A advogada que lutou em causa própria pela vida
“Sua cliente está então com câncer e o plano recusa a cobrir a quimio?”, fala a juíza. “Não. Sou eu mesma”
atualizado
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Quinta-feira final do expediente. Eu já exausta. Vêm me dizer que uma advogada quer falar sobre uma liminar. Rotina. Entra uma advogada jovem, um pouco abatida, o que só vi depois, me chamando atenção como a moça falava e se expressava com extrema habilidade e clareza. Sou boba com essas coisas, gamo na hora.
Fui folheando o processo enquanto a escutava, apenas para não interromper o raciocínio perfeito, pois o que eu tinha para entender já tinha entendido em dois minutos. Plano de saúde, negativa de cobertura. Rotina. “Sua cliente está então com câncer, com metástase, e o plano recusa a cobrir a quimio?”, falo mais para impulsionar a conversa. “Não. Sou eu mesma. Estou em causa própria, doutora.”
Estar sozinha com uma das partes e ela estar suspensa no ar com uma notícia de câncer importante; ouvir sua história sobre a doença e o arranjo dolorido que estava tentando fazer com ela. Não é rotina.
Levei um susto que já sabia que iria virar água no meu rosto em 3, 2, 1… Ela lê meu pensamento e diz que vai acabar chorando, que eu perdoe a sua emoção. Retruco: “só perdoo se você perdoar a minha”, levantando os olhos e mostrando a ela as lágrimas já pingando.
Levanto, fecho a porta da sala, e choramos alguns instantes, uma mão na outra, eu e essa estranha, que na sua falibilidade, nas suas impossibilidades diante de uma doença que levou seu útero, sua chance de ser mãe e agora se espalhava, me era tão conhecida.
Pedi que esperasse um pouquinho para já sair dali com o que pediu. Não podia fazer (quase) nada por ela, mas dormir algo mais feliz aquela noite, ah, eu podia, e ela iria.
Pedi mais uma coisa: que voltasse para contar que estava curada. Mais choro. Um abraço. É trabalho. É rotina. Mas às vezes não é nada disso.
Gabriela Jardon é juíza do Distrito Federal desde 2005. Formada em Direito pelo UniCeub com mestrado em Direitos Humanos pela Universidade de Essex, na Inglaterra, escreve no Metrópoles todo domingo.