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Tenha muito cuidado com as falsas polêmicas das redes sociais

Dizer que um livro é perigoso – ou não – requer majoritariamente que ele seja lido

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1 de 1 O-menino-que-espiava-pra-dentro1 - Foto: Reprodução

Recentemente, em todos os meus grupos de WhatsApp, circulou um vídeo de uma mãe “alertando” sobre o perigo do livro “O menino que espiava pra dentro”, da Ana Maria Machado, publicado em 1983. A mãe que citei foi filmada lendo alguns fragmentos do livro e “esclarecendo” que ele continha conteúdo perigoso e que incitava ao suicídio infantil. Comprei o livro, me debrucei sobre o tema e ouvi especialistas. Além de abordar o tema do vídeo da mãe, precisamos discutir também o impulso de algumas pessoas em usar as redes sociais para dar opiniões bastante sensíveis sobre temas muito importantes sem estudar o assunto minimamente.

Primeiro, LEIAM o livro. Não somente este, mas qualquer outro que venha a ser crucificado em um futuro próximo. Dizer que um livro é perigoso – ou não – requer majoritariamente que ele seja lido.

Opinar sobre um livro é compreender o texto por inteiro, lembrar que leitura para crianças exige contextualização, acompanhamento e fantasia. Muita gente discutiu o tema envolvendo o livro da Ana Maria Machado sem nunca ter sequer pego nele.

Com esse ponto, Michelle Soares, psicóloga e mestre em antropologia, resume o livro e faz ponderações primorosas sobre ele.

“A narrativa do menino Lucas é ativa na composição entre ficção e realidade. Ele tece de forma inteligente alternativas para ampliar o seu campo experimental e emocional, utilizando vários recursos do seu contexto vivencial, mesclando seu repertório literário aprendido e criando outros, como o seu amigo imaginário, que argumenta e provoca o conteúdo aprendido. Essa dinâmica subjetiva é um belo desenho de como as crianças pensam e desenvolvem sua autoexpressão, respeitando, claro, a coerência interna dos recursos subjetivos de cada ser. Lucas, particularmente, observa tudo e redimensiona o que vê, usando o real e literário como combustível para sua autoria no mundo (mundo esse, por enquanto, imaginário). Quanto a narrativa que Lucas constrói, tem-se a fantasia de que o seu mundo inventado é mais divertido do que o de fora. Lucas quer brincar e transformou a sua imaginação em um objeto lúdico. Muitas crianças têm grande potência imaginativa e podem sim passar muito tempo ‘pensando’, às vezes até mais do que ‘se relacionando’. Esse parece ser o caso de Lucas. A maçã com a qual ele se engasga, possivelmente também imaginando que se engasga, foi ‘do que’ ele brincava quando adormeceu e, então, mergulhou em um amplo campo simbólico e imagético: os sonhos. A autora condensa aqui a imaginação aos sonhos e provoca um corte no entendimento que Lucas tinha ao valorizar apenas o imaginário. A autora redireciona a história, assim como um adulto deve também intervir e orientar uma criança, pois conclui que, para sonhar ou imaginar, é preciso viver e estar acordado, senão não há de onde tirar as ‘coisas’ para imaginar. Esse entendimento não é do Lucas. Ele vem de fora e a autora demonstra como isso será levado ao entendimento do Lucas, com a ajuda da sua mãe, que o acorda para a escola e o presenteia com um cachorrinho, reorientando a narrativa e mostrando a função estruturante de um cuidador atento. E, finalmente, a autora conjuga a riqueza da vida imaginária à riqueza da vida de verdade. Com Tata, agora o cachorrinho do Lucas, que incorpora o seu afeto pelo amigo imaginário”.

A psicóloga finaliza: “Um livro é um lugar de experiência real e imaginária e elas devem ser, também, conjugadas. A forma como um livro é experimentado por uma criança, mediado e vivenciado, faz parte do que ela vai absorver como perspectiva literária e aprendizado ontológico”.

Ledo engano
Corroborando com a opinião de que o livro não incita ao suicídio, a psicóloga Maria Raquel Gonçalves diz que “a fuga e esquiva estariam presentes na necessidade constante que o personagem possui de ‘escapar’ de sua realidade, entrando no seu mundo imaginário, particular e peculiar. Porém, a partir dessas possibilidades interpretativas, tentar procurar uma ligação estreita com ideação autodestrutiva poderia ser um ledo engano”.

A psicóloga lembra que o suicídio é um assunto complexo e sistêmico. Possui aspectos pessoais e inúmeros que devem ser avaliados. Uma simples melancolia, fuga e esquiva da realidade não são determinantes para tanto.

Entenda: você, como mãe e pai, pode entender que esta leitura não seja adequada para seu filho, mas espalhar o pânico nas redes sociais sobre um tema tão sensível, que pode inclusive prejudicar brutalmente a carreira de uma escritora que tem uma série de livros lindos e uma trajetória riquíssima, é algo que devemos refletir profundamente.

Impulsividade
Felizmente, ao que parece, o frisson causado pelo vídeo desta mãe não deve gerar muitos prejuízos a Ana Maria Machado. Mas vivemos tempos de muita impulsividade nas redes sociais – inclusive de pessoas famosas, com forte poder de convencimento e influência.

Precisamos parar para pensar um pouco antes de publicar qualquer coisa – isso serve para nosso excesso de exposição, mas também serve para opiniões raivosas sobre temas sensíveis que podem gerar um problema ainda maior.

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