Socorro, meu filho de 6 anos tem um iPhone!
Fabricantes tem estudado dispositivos para proteger crianças que lidam com smartphones, mas dar limites é parte de educar e função dos pais
atualizado
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Chego no meu trabalho e um colega desabafa. Segue o diálogo:
– Meu filho usou toda a minha rede de dados de internet jogando um joguinho. (O menino tem 6 anos. Repito, SEIS ANOS)
– Como assim? Como ele fez isso?
– Ele tem um celular e, quando o wi-fi lá de casa caiu, mexeu na configuração do aparelho D-E-L-E e consumiu todo nosso 4G.
Fiquei pasma. Não somente pela habilidade do pequeno em manipular o celular, mas em saber que ele tinha um smartphone.
Essa questão é alvo de debates em todo o mundo. No início do ano, dois grandes acionistas da Apple propuseram que a empresa fizesse mudanças fundamentais em sua linha de dispositivos para proteger as crianças, inclusive sugerindo a criação de um comitê de especialistas para estudar como dispositivos inteligentes podem impactar no crescimento de nossos filhos e informar aos pais sobre perigos em potencial do uso em excesso desta tecnologia. Chegaram a propor até adicionar ferramentas de controle parental mais efetivo nos dispositivos da empresa.Não consegui deixar de julgar a escolha do amigo: será que é saudável um mocinho de 6 anos ter um celular?
Reportagem recente do Gizmodo abordou o tema. “Sendo bem claro, a Apple já conta com um controle parental nativo no iOS. Porém, ele é um pouco limitado. A ferramenta previne usuários de comprar ou assistir filmes adultos, esconde apps voltados para adultos em dispositivos compartilhados e permite desabilitar a câmera, por exemplo. A carta, no entanto, propõe mudanças dramáticas. Imagine um iPad que, por exemplo, com um tempo específico de uso, possa ser desligado ao acabar um determinado prazo”, escreveu o site.
Notem que quando se pede para Apple estabelecer que haja um desligamento AUTOMÁTICO do gadget da criança depois de um período de tempo de uso estamos retirando dos pais uma das suas obrigações parentais: a de dar o limite.
Dar limite é um dos alicerces da educação. E hoje a prática está caindo em desuso. É chato, é cansativo, é trabalhoso. Preferimos que a tecnologia faça esse papel por nós. Lamentavelmente, delegar o limite é um sintoma de uma paternidade que está perdida.
Ao jogar para a Apple a responsabilidade do desligamento do celular, o pai – que trabalha demais, não está presente no dia a dia do filho e tem dificuldades em dizer não ao pequeno – evita assim uma discussão ou negociação com a criança. Certamente, tudo seria resolvido com o seguinte e irrefutável argumento: “Seu celular é assim, desliga sozinho”. E fim de papo!
Ao meu ver, os acionistas acertaram ao sugerir a criação do comitê de estudos que apontem os possíveis impactos da tecnologia – e que alertem os pais dos riscos embutidos na prática de dar um smartphone a uma criança de 6 anos. Afinal, cabe aos pais tomar decisões, escolher os limites, dialogar e negociar com o filho.
Essa discussão traz à tona outras questões, e uma delas é a legitimidade do responsável em dar limites aos filhos.
Façamos um exercício juntos. Em qual cenário sua família se identifica?
Cenário A – todos apressados, atrasados, em pé, segurando xícaras de café com leite, TV ligada, frenesi.
Cenário B – todos sentados, conversando, trocando idéias e impressões sobre o dia, sem pressa e se alimentando.
Não hesitaria em responder que a grande maioria das famílias vive hoje o cenário A, no qual é bem mais fácil pedir pra Apple desligar o celular do seu filho.
As refeições, o carro, o lazer devem ser momentos de intimidade, de conversas, de trocas. Não atribua um valor nocivo ao uso de tecnologia, pois, em si, a tecnologia não é. Sua nocividade está vinculada ao seu uso saudável ou não.
Tem hora para conversar. Tem hora para usar o gadget favorito.
É preciso evitar que a tecnologia seja uma muleta. Evidentemente, entendo os motivos que nos levam a preferir ligar o tablet a conversar.
Dentro do contexto de uma família que escolheu ter filhos, é preciso lembrar que a criança foi algo pensado, esperado e planejado pelo casal. E, por essa lógica, não concordo que devemos escolher sempre o caminho mais fácil. Educar não é simples e a boa educação não permite atalhos. Dá trabalho, demanda paciência, dedicação e disciplina
A tecnologia precisa ser vista como mais uma das opções de atividades dos nosso filhos – e não a principal. Penso que muitas famílias devem se perguntar: “por que é ruim usar tablet no carro, nas refeições? É o mundo de hoje, oras”.
Vemos em restaurantes e carros famílias interagindo com seus aparelhos e não entre si. O que é visto é a tecnologia substituindo o convívio social e familiar. Perde-se muito não brincando, não interagindo, não criando intimidade com os amigos e família. Estes são os pais que descobrem da pior forma possível, por exemplo, que o filho está metido com drogas ou prestes a reprovar de ano. Não há diálogo, o pai perde a capacidade de perceber o que está acontecendo com seu filho.
A consultora familiar Alice Simão, fundadora e diretora da escola Kingdom Kids, reforça: “Tecnologia faz parte do nosso mundo atual, faz parte do cotidiano das famílias. Não há como evitá-la. Mas, como tudo na vida, tem dois lados, positivo e negativo”. Alice ensina: “O tablet ou smartphone não devem ser oferecidos como substitutos, uma alternativa de ‘passar o tempo’. Ao fazer isso, você priva a criançada de ter acesso às suas emoções, dos ganhos com as relações com outros pares. Essa desconexão imprime uma dificuldade na criança em lidar com suas emoções, com os seus próprios limites, em entender a figura da autoridade”.
No primeiro ano de vida do bebê, Alice Simão não recomenda oferecer nenhum tipo de tecnologia. “O desenvolvimento dos pequeninos é proporcionado pelo afeto, pelos seus condutores principais, a mãe e o pai”, diz.
E, a partir do primeiro ano da criança, ela sugere que a tecnologia seja oferecida de forma gradual. Escolha aplicativos que apresentem recursos de desenvolvimento para crianças, como os musicais. Eles promovem o desenvolvimento rítmico, perceptivo e visual, por exemplo, explica Alice.
Para as crianças acima de 5 anos, use o bom senso quando estabelecer limites de tempo de uso e no conteúdo a ser visto por elas.
Outro aspecto a ser falado é que não vale levar o celular para a brincadeira em família (nem os pais e nem a criança). Sua atenção deverá ser total para o seu pequeno. Não seja multitarefa ao brincar, ao conversar ou ao jantar com o seu filho. Acredito que ele mereça sua atenção 100%, não acha?
Na próxima semana, aprofundaremos os estudos sobre o uso saudável da tecnologia para bebês, crianças e adolescentes.