Welligton não é o único. No DF, 1 preto é vítima de injúria racial por dia
Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública, no primeiro quadrimestre de 2020, foram registrados 131 crimes dessa natureza
atualizado
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Com palavras, gestos e olhares, o preconceito atinge uma pessoa preta por dia no Distrito Federal. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, entre janeiro e abril de 2020, foram registrados 131 casos de injúria racial.
No mesmo período do ano passado, a pasta contou 141 ocorrências. No dia a dia, no entanto, a realidade mostra que há uma grande quantidade de casos subnotificados.
A afro-colombiana Eva Maria Lucumi Moreno veio ao DF com o objetivo de fazer doutorado na Universidade de Brasília (UnB), mas vivenciou três episódios de racismo desde 2019.
A primeira agressão ocorreu dentro da instituição de ensino. Eva vivia com outras estudantes na Colina, mas uma das colegas a tratava com desprezo. “Um dia descobri que ela me chamou de carniça. Fiquei assombrada”, afirmou.
Silêncio
Ainda na UnB, ela testemunhou outra agressão verbal. Em uma reunião em que era a única mulher negra presente, ouviu o seguinte relato. “Ele falou que as mulheres negras não deviam estudar em universidades, que o máximo que podemos fazer é ser babás, faxineiras, prostitutas e secretárias”, contou.
As demais pessoas no ambiente ficaram em silêncio.
Ouça as palavras de Eva:
Constrangimento
O terceiro episódio ocorreu nesta semana. Eva estava no Núcleo Bandeirante. Bebia refrigerante na rua com um amigo branco. Ambos foram surpreendidos por um homem dizendo que não poderiam ficar ali.
Estudante passou por três episódios de racismo:
“Ele disse que era policial e mostrou um distintivo. Falou que estávamos bebendo vinho e, por isso, não podíamos ficar. Mostramos o refrigerante. E ele disse que estávamos fumando um baseado e insistiu. Não estávamos fumando maconha”, lembrou.
O amigo estava no lugar muito antes da chegada de Eva. Foi então que a ficha caiu. “Meu colega estava lá há muito tempo e o homem só reclamou quando cheguei. Se fosse uma mulher branca, aquilo não teria acontecido”, lamentou.
Racismo
Neide Rafael participa da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno. Em janeiro, foi alvo de racismo em uma viagem turística de classe média alta com destino à Correntina (BA). O caso ocorreu em um posto da BR-020.
Uma funcionária do estabelecimento tentou barrá-la por quatro vezes. Repetia os valores das refeições de forma ofensiva, até esgotar a paciência de Neide. “Senhora, lugares como este aqui eu conheço no mundo todo”, rebateu a ativista negra.
Neide é professora aposentada e trabalhou em dois grandes colégios particulares do DF. O gerente tentou colocar panos quentes. “Respondi: ‘aqui não tem solução, vocês praticaram racismo e é crime. Vou tomar as medidas judiciais'”, disse ela, que processou o comércio.
Pandemia
“O mundo vive a pandemia do racismo. É estrutural, latente e gritante. A única solução é quebrar o sistema racista”, alertou. Neste contexto, Neide defende o ensino como remédio. “Nelson Mandela dizia: a educação é uma arma poderosa.”
“As famílias negras também devem educar seus filhos a serem negros. Não para que respondam com violência, mas para que façam o enfrentamento consciente e humanizado”, acrescentou.
O vendedor ambulante Welington Luiz Maganha ainda sente dores pelo corpo. Em 1 de junho, ele foi agredido por policiais militares em Planaltina. Para o trabalhador, cada golpe foi carregado de preconceito. “Queriam me diminuir enquanto ser humano”, assinalou.
No momento das agressões, o ambulante pensou que iria morrer. “Pensei que eles iam ‘terminar o serviço’, né? Não consigo dormir direito depois disso. Acordo à noite com qualquer barulho, achando que eles vão entrar na minha casa”, confessa.
Protestos
Outro caso escancarou o racismo no país nesta semana e levou a um protesto em frente à Fundação Palmares. Em áudio vazado, o presidente da instituição, Sérgio Camargo, xingou a mãe de santo Adna dos Santos de “uma filha da puta de uma macumbeira”.
“Sempre lutei contra a discriminação, trabalhei quase quatro anos na Fundação Palmares. Tudo me abalou muito psicologicamente e mexeu com minha saúde mental, mas preciso me levantar e lutar”, contou ela ao Metrópoles.
O episódio levou o Ministério Público Federal (MPF) a abrir investigação contra Sérgio Camargo.
Confira a manifestação em frente à Fundação Palmares:
Cenas do protesto na Fundação Palmares:
Movimento negro
Nos EUA, a morte de George Floyd desencadeou uma onda de manifestações pelo mundo, inclusive no Brasil no último fim de semana.
O pesquisador e ativista negro Marcelo Domingos está fazendo doutorado em Austin, capital do Texas, sobre a repressão do movimento negro no DF durante a ditadura militar, a partir dos arquivos públicos da própria Secretaria de Segurança.
“A perseguição a organizações negras no Brasil não é somente política. Até hoje temos e sabemos que a gente tem uma perseguição sistemática a religiões de matriz africana no Brasil”, enfatizou.
Segundo a pesquisa, o Movimento Negro Unificado (MNU) foi relevante na transição para a democracia. Grande parte das lideranças eram de mulheres. A pesquisa de Domingos faz parte de uma série coordenada pela professora Ana Flávia Magalhães, da UnB.
“A presença negra no DF é silenciada. Há o discurso da fundação da cidade pelos pioneiros e candangos, mas nunca tem a cara dos candangos”, observou.
Domingos testemunhou as manifestações contra o racismo em Austin e notou semelhanças e diferenças entre os atos no EUA e no Brasil. Para o estudioso, nem todas pessoas que estão indo às ruas têm, de fato, o objetivo de combater o racismo.
Imagens dos protestos em Austin:
“A natureza do racismo brasileiro é incomodamente disfarçada, subentendida e não assumida. Até hoje muitas pessoas acreditam que racismo não existe no Brasil, mas curiosamente todo mundo conhece alguém racista. É engraçado e ao mesmo tempo triste”, disse.
Do ponto de vista de Leonor Costa, jornalista e militante feminista antirracista, a postura do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) incita, encoraja e respalda a violência racial. “O racismo é estrutural”, reforçou.
De acordo com a coordenadora do Sindicato dos Jornalistas do DF e integrante da Comunidade de Jornalistas pela Igualdade Racial no DF (Cojira), Juliana Cézar Nunes, o movimento negro recebe denúncias diariamente.
Para Juliana, houve avanços, como as novas cotas na pós-graduação da UnB e no número de pessoas autodeclaradas pretas no DF, mas o cenário ainda está distante de ser considerado ideal. “Os atos presenciais e virtuais serão intensificados. Brasília foi construída por mãos negras”, cravou.