Vulneráveis: em média, mais de uma pessoa é estuprada por dia no DF em 2021
De janeiro a julho deste ano, 312 pessoas foram vítimas de estupro em todas as regiões administrativas do Distrito Federal
atualizado
Compartilhar notícia
Ansiedade, depressão e sensação de vazio. Juliana*, 26 anos, descreve essas sensações como fantasmas de um abuso sexual. Há cerca de dois anos, a jovem foi dopada e violentada em uma festa no Distrito Federal.
“O estuprador era meu conhecido e, até hoje, não consegui denunciá-lo”, diz Juliana. “É uma sensação de impotência. O que tem me ajudado é o tratamento psicológico que comecei recentemente”.
A situação da jovem é uma realidade que se espalha por todo o país. Análises da Secretaria de Segurança do Distrito Federal expõem um quantitativo elevado e preocupante de casos de estupro: em 2021, do período de janeiro até julho, totalizam-se 312 vítimas de estupro em todas as regiões administrativas. Em média, mais de uma pessoa sofre abusos sexuais no DF diariamente.
Veja os dados deste ano:
Os números do mesmo período de 2020 mostram o mesmo horror. Somam-se 353 vítimas de janeiro a julho, e 606 até dezembro. No entanto, não é possível captar a realidade das informações apenas por meio da estatística. Quem avalia é a advogada criminalista Ana Maria Martínez, do escritório Soraia Mendes, Marcus Santiago & Advogadas Associadas. Uma de suas especialidades é voltada para direitos das mulheres contra a violência.
“No caso de estupro e outras violências contra a liberdade e a dignidade sexual, nós vislumbramos profundamente um quadro da chamada cifra oculta, ou seja, são muitos os casos que jamais chegaram ao poder público”, salienta Ana Maria. “A partir dessa realidade, podemos pensar por qual razão essas mulheres não recorrem ao sistema de Justiça”, afirma.
Os motivos que paralisam Juliana em relação à denúncia são compartilhados por muitas mulheres: medo do agressor e de não ser ouvida em uma sociedade que, muitas vezes, valoriza mais as palavras dos homens.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo, num ranking de 83 nações. Em conformidade com esses dados, o Atlas da Violência nacional realça que mulheres negras são as que mais sofrem violência.
Além disso, de acordo com o 14ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, registraram-se mais de 66 mil ocorrências de estupro e estupro de vulnerável em 2020. Cerca de 85,7% das vítimas eram do sexo feminino.
Perfil das vítimas
A violência sexual é um fenômeno muito mais amplo e generalizado do que se imagina. Assim resume Fabrício Lemos, doutor e mestre em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB).
“Acontece em todas as classes sociais, com pessoas de todas as raças, cores e diferentes níveis de escolaridade. É um fenômeno muito mais amplo do que as notificações e ocorrências”, afirma Lemos. “Estudos internacionais indicam que uma a cada três mulheres sofreram violência sexual em algum momento da vida; e um em cada cinco homens também: é um fenômeno que não é visto. Muitas vítimas de estupro são meninos, e precisamos falar sobre isso”.
O agressor, muitas vezes, está disfarçado sob o papel de quem deveria resguardar e proteger. Estudos compilados pela Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), em 2019, revelam que quase 90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são registrados em ambiente familiar.
“Estudos internacionais indicam que uma a cada três mulheres sofreram violência sexual em algum momento da vida; e um um cada cinco homens também: é um fenômeno que também acontece, mas não é visto. Muitas vítimas de estupro são meninos, e precisamos falar sobre isso”
Fabrício Lemos, doutor e mestre em psicologia pela UnB
“O estupro por si só é traumático em todos os sentidos, seja cometido por desconhecidos na rua ou não. No entanto, no caso em que envolve membros da família, a dinâmica intensifica o trauma. O abusador da família, seja pai, padrasto, tio ou avô, não é abusador o tempo todo. Essa mesma pessoa também dá carinho, atenção, é vista como herói. E faz aquilo que a criança não entende, a depender da idade. Sente-se violentada, machucada e, à medida que vai crescendo, entende que se tratou de um abuso”, explica o psicólogo.
Ao contrário do que se pensa, um percentual significativo desse tipo de crime ocorre não em áreas escuras, desabitadas e com alta possibilidade de risco, mas, sim, em ambientes domésticos e com agressores conhecidos das vítimas. Quem corrobora a informação é o especialista em segurança pública Leonardo Sant’Anna.
Para ele, o melhor caminho é a informação. Deve ocorrer em duas vertentes importantes: o conhecimento do que caracteriza o crime do estupro, que deve ser levado a todos, inclusive em campanhas direcionadas a ambientes escolares; e, complementarmente, em como deve ser feita a denúncia.
Cicatrizar é possível
O Distrito Federal conta com Centros de Especialidades para a Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual, Familiar e Doméstica (Cepav). Desenvolvido por meio da Secretaria de Saúde (SES), esse trabalho registra um número crescente de atendimentos ao longo dos últimos anos.
No total, são 17 Cepavs espalhados em 12 regiões administrativas, todos instalados em hospitais públicos e em algumas unidades básicas de saúde (UBSs). Das 8h às 18h, psicólogos fazem o acolhimento das vítimas, sejam mulheres, sejam crianças, sejam homens.
A partir dali, são dados os encaminhamentos de acordo com a necessidade de cada caso. Todo o trabalho demanda parceria da SES com outros órgãos do GDF. Atuam em conjunto com os Cepavs as secretarias de Justiça, de Segurança Pública, de Assistência Social e de Educação, além dos conselhos tutelares.
O suporte começa nos pronto-atendimentos dos hospitais, 24h por dia, todos os dias da semana. Qualquer pessoa que sofreu uma agressão física ou sexual deve procurar uma UPA em até 72h. Quando isso acontece, ela recebe medicamentos contra infecções sexualmente transmissíveis e, quando é o caso, prevenção de gravidez em decorrência de estupro.
“Esse trauma crônico é complexo de lidar. Daí, a importância do tratamento, de a vítima ser inserida no sistema de ajuda. Mas, apesar de tudo isso, há uma coisa boa: há vida após o estupro”, reforça o psicólogo Fabrício Lemos. “Se a pessoa foi acolhida, se há punição desse autor e todo um atendimento para essa vítima, ela pode, sim, se recuperar. Esquecer é impossível, mas pode cicatrizar. A pessoa vai olhar para trás, e isso não a impedirá de retomar sua vida”.
Apesar do trauma, das dificuldades, é possível ser feliz e superar: esta é a mensagem do psicólogo para todas as vítimas do DF, do Brasil e do mundo.