Volta das chuvas faz moradores de vila no DF reviverem trauma: “Medo”
Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, ficou destruída em janeiro último. Moradores questionam se a região não deveria ter recebido mais obras
atualizado
Compartilhar notícia
Dez meses após chuvas que inundaram casas, destruíram móveis e eletrodomésticos e deixaram ilhadas as famílias da Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, os moradores temem viver tudo de novo. O período chuvoso está de volta no Distrito Federal e, com ele, a incerteza sobre os próximos dias.
A Vila Cauhy é situada às margens do córrego Riacho Fundo, que, em janeiro último, transbordou de modo a alagar as casas e encobrir pontes da região, como a Canarinho. A passagem recebeu reforços na estrutura, mas moradores questionam se medidas emergenciais como a construção de muros de gabião para conter e melhorar a fluidez das águas não deveriam ter sido implementadas.
Muros de gabião são espécies de gaiolas de aço preenchidas com pedras, que podem ser usadas para conter barragens, rios e afins. Imagens feitas pelo Metrópoles mostram o córrego Riacho Fundo correndo sob a ponte sem nenhuma contenção, muito próximo das casas:
Moradora da Vila Cauhy há 20 anos, a autônoma Cláudia Leão, 56, perdeu diversos móveis nas chuvas do início do ano. “Estou aqui desde pequena, criei meus filhos aqui. Nas chuvas de janeiro, perdi tudo. A gente que é humilde, trabalha, só tem a lamentar”, comenta.
Cláudia acredita que a ponte Canarinho e arredores deveriam ter recebido melhores reparos. “Em janeiro, essa ponte não caiu, mas ficou bem bamba. Daí, vieram aqui e reforçaram as placas, mas, de lá para cá, só isso”, aponta.
Ela alega que funcionários que prestam serviço à Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap) teriam dito aos moradores que o local receberia mais serviços. “Muita gente vem aqui, olha e dá meia-volta. Disseram que iam instalar os muros de gabiões, mas até agora, nada. Se chover de novo, vamos ficar submersos”, prevê, apreensiva.
“Aqui na Vila Cauhy falta ajuda do Poder Público. Isso aqui tem 60 anos. Se for falar de regularização, Arniqueira, Vicente Pires, grande parte do Park Way são todas regiões não regularizadas. É uma vergonha exigirem regularização para intervenção. Eles têm que vir fazer porque aqui tem gente, eu pago imposto, todo mundo aqui paga.”
Outra moradora que teme o período chuvoso é a autônoma Ludmilla Silva, 37, que mora exatamente no início da ponte Canarinho. Ela alega que não vê obras de infraestrutura no local. “Nada vem sendo feito, eu vejo funcionários trabalhando mais nas outras duas pontes”, comenta.
Não faltam exemplos de pessoas que sofreram danos severos em janeiro último. O aposentado Robério Neves, 58, mora na Vila Cauhy há 38 anos e é mais um exemplo de quem perdeu tudo nas chuvas do início do ano. “[Quando chove] é pegado, é mau. Perdi barraco, perdi tudo. Sou cadeirante, eu sofro muito aqui”, afirma.
Cansada de perder bens materiais e com medo de perder a vida, a aposentada Gilsa Augusta, 56, deixou a Vila Cauhy e buscou moradia no Entorno, na Cidade Ocidental (GO). “Eu saí daqui em 2022 por causa das enchentes e hoje moro na Cidade Ocidental, mas minha filha ainda mora aqui na Vila. Nas enchentes passadas, eu fiquei só com a roupa do corpo. Nesta última, de janeiro, minha filha também perdeu tudo”, lamenta a mulher. “Fazer o quê? Trabalhar e ganhar de novo, porque as autoridades não nos dão nada.”
Assista aos depoimentos:
Mais sério do que se imagina
Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB), Frederico Flósculo, a preocupação e o pedido dos moradores sobre os muros de gabião fazem sentido, mas o problema é mais sério e não será resolvido a curto prazo. “Devem ser implantadas obras caras, cuidadosamente estudadas, além de um estudo completo de toda a poligonal da Vila Cauhy, envolvendo aspectos de drenagem e também de saneamento”, analisa o especialista.
Ainda de acordo com Flósculo, a Defesa Civil tem papel fundamental na manutenção de toda a Vila Cauhy, não só participando dos estudos das obras, mas também remanejando a população que possa estar em risco. “Não basta demarcar, as famílias em risco devem ser removidas. Deve haver um plano de manejo dessa área tão vulnerável. O Governo do Distrito Federal (GDF) deve se responsabilizar disso”, acredita.
Remanejar parece um cenário seguro para a população de áreas de risco. Mas, remanejar para onde? “Boa pergunta”, responde o especialista, indicando a complexidade do tema. “Considerando que grande fração urbana do DF é formada por ocupações irregulares, e que os políticos não param de agir demagogicamente em defesa da regularização de situações dificilmente regularizáveis, imóveis construídos dentro das políticas habitacionais corretas devem ser reservados para a população retirada de situações de risco”, sugere.
Para o urbanista, é preciso ocupar edificações inutilizadas. “Em 2020, o GDF cogitou usar os muitos edifícios vazios do Setor Comercial Sul para a habitação popular. Talvez seja a hora de examinar esse tipo de situação de emergência.”
Lama e desespero
As chuvas do início do ano que causaram grandes prejuízos na Vila Cauhy começaram na madrugada do dia 2 de janeiro. Após os registros de inundações, o Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF) chegou a orientar que alguns saíssem de seus imóveis e retornassem apenas quando o nível da água abaixasse.
O vídeo abaixo, gravado à época, mostra a lama que tomou conta da região, deixando os moradores desesperados.
O GDF estimou, na ocasião, que 60 famílias que ficaram desabrigadas em todo o DF, sendo a maioria delas da Vila Cauhy e da Candangolândia. O GDF chegou a decretar estado de alerta após as fortes chuvas.
Autoridades
Em resposta ao Metrópoles, a Novacap informou que fez obras de execução de estruturas na passarela Liverpool, que fica na Vila Cauhy, e na Boca Louca, localizada na Vila Nova Divinéia, ambas citadas na reportagem. Um ponto próximo ao Fórum Desembargador Hugo Auler também recebeu intervenções. “No momento, apenas a passarela Divinéia está em fase final de execução. A previsão de conclusão dos gabiões da ponte da Vila Divinéia é para o próximo mês”, afirma a companhia.
A Novacap justifica que o fato de a região não ser regularizada atrapalha nas intervenções. “Tendo em vista se tratar de uma área irregular, a Novacap somente pode atuar no local de forma paliativa, uma vez que não há sistema de drenagem implantado. Não há como falar em projeto definitivo devido a sua atual situação”, explica.
A reportagem tentou contato com a Defesa Civil, a partir das falas do especialista que mencionam o órgão. O espaço está aberto para manifestações.