Vigiados da ditadura: regime militar espionou 71 mil pessoas em Brasília
O Metrópoles teve acesso a nomes e histórias esdrúxulas de pessoas comuns fichadas que não tinham a mínima noção de que eram monitoradas
atualizado
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O período da ditadura militar vigiou pelo menos 71.381 pessoas comuns no Distrito Federal. Os nomes foram fichados e estão guardados em 27 caixas no Arquivo Público do DF. Os documentos estão classificados como reservado, confidencial ou secreto. Pela documentação à qual o Metrópoles teve acesso, qualquer atitude poderia ser considerada suspeita e, assim, a polícia da época fazia levantamentos com as informações pessoais. Os vigiados não faziam ideia de que suas vidas eram devassadas pelo regime.
O relatório servia como um nada consta paralelo, guardado apenas pela Segurança Pública do regime, e era consultado para definir uma promoção, aprovação em concursos, condecorações etc. Esses documentos são localizados por meio de fichas, que estão em ordem alfabética. No modelo ideal ainda tinha filiação, além de data e local de nascimento do indivíduo. Em todos os documentos, há o código ACE, que significa Acesso Cronológico de Entrada, e faz referência à data em que a pessoa foi “fichada”.
Havia alguns com informação a mais, como profissões, codinomes, movimentos, mas que nem sempre eram explicativos. Nesse sentido, foram encontradas definições como “dona de casa, árabe, padre, associação de moradores do Paranoá, professor, King Kong, Carecas do Planalto, movimento inquilinos de Ceilândia e Tóxico”. Nem as crianças escapavam. Nos papéis há inscrições de meninos e meninas de 12 ou anos ou menos.
Na virada de sexta (31/3) para sábado (1º/4), o Brasil completou 59 anos do início da Ditadura Militar – período que durou 21 anos, e ficou conhecido pelas repressões, censuras, violências, torturas, desaparecimentos entre outros crimes contra a humanidade. Apesar de a ditadura ter começado em 1964 e encerrado em 1985, o acervo disponibilizado pelo Governo do Distrito Federal tem um recorte entre os anos 1967 a 1989.
“Não deixou de ser uma forma de violência”, disse o historiador e pesquisador Marcelo José Domingos, com PhD em América Latina pela Universidade do Texas. O especialista teve acesso aos documentos quando foi gerente de Acervo Permanente no Arquivo Público, em 2014, e afirma ter ficado impressionado com a capacidade e o alcance do excesso de monitoramento. “Não se compara à tortura, mas é complicado pensar que absolutamente tudo que se fazia era vigiado pelo Estado, registrado e, pior, sua vida íntima e privada ser passível de ser aberta por qualquer um.”
O professor ainda chama a atenção para a obsessão do governo à época. “A ditadura monitorava todos. As pessoas precisavam sentir medo, sentir que estavam sendo vigiadas. Em um regime totalitário, o cidadão comum se torna inimigo do Estado.”
Pipoqueiro e traficante
Entre as milhares de páginas disponíveis, um relatório com 98 folhas apontou a Operação Sepemar, que tinha o objetivo de desvendar quem fornecia maconha a militares. Com o decorrer da investigação, a Segurança Pública descobriu que se tratava de um pipoqueiro traficante, que tinha um ponto em frente à Igrejinha, na 306 Sul.
“Com o intuito de disfarce, vendia pipocas nesse local, onde a afluência de menores era bem grande, e a faixa etária variava de 13 a 18 anos”, consta no relatório. As investigações que tiveram início em 11 de dezembro de 1972 e foram concluídas em 16 de março, com a prisão do pipoqueiro e demais envolvidos, também monitoraram pessoas que simplesmente compravam pipoca do homem.
O diagnóstico tem a identificação pessoal de 50 jovens de 13 a 25 anos, com o endereço da casa de cada um e da escola dos estudantes. Constam alunos de colégios até hoje tradicionais do DF, como Marista e La Salle. Nos autos, o pipoqueiro foi classificado como “pederasta”.
Entre os compradores e vendedores, estão relatados seis militares do Exército, dois da Aeronáutica, oito fuzileiros navais, 11 policiais militares do DF e 12 pessoas civis.
Música alta
Em 1971, os militares montaram um dossiê contra uma moradora da 206 Sul a partir de reclamações de vizinhos pelo som alto da “radiola”, conforme consta em um relatório. “Coloca o seu rádio em altura excessiva, perturbando a tranquilidade de seus vizinhos.” Essa primeira denúncia fez com que a polícia procurasse por ela.
Ao bater à porta da servidora pública, diz o documento, a moradora tentou dar uma “carteirada” dizendo conhecer pessoas influentes e citou o nome de um militar com alto poder hierárquico na época, também morador da quadra. A partir desse dado, a polícia montou um dossiê de 18 páginas com informações da data que ela ingressou no serviço público, com o número da matrícula e até mesmo com registro de portarias que ficaram sem efeito, mas nas quais ela é mencionada.
“Hoje, mesmo com a facilidade de informação que se tem em fazer um levantamento desses, ainda há dificuldades. Imagina naquela época. Então, havia um empenho para saber todos os detalhes da vida do cidadão”, destacou o pesquisador Marcelo José Domingos.
O historiador ressaltou que o informe também era usado como laudo, em que os próprios policiais diagnosticavam conforme queriam. O primeiro ponto do resultado do inquérito da moradora da Asa Sul define a mulher como “psicopata”. Na página 6, acrescenta que parece uma pessoa “evidentemente perturbada e uma infeliz”.
Impacto na carreira
Encontros entre amigos eram passíveis de serem monitorados a depender do caso. “Qualquer reunião de pessoas era motivo de vigiar. Havia um agente olhando e produzia um relatório com nome em um informe”, explicou o coordenador de projeto do repositório digital do Arquivo Público, o historiador Wilson Vieira Junior. Ele contou que era comum que os informantes se identificassem e catalogassem as pessoas presentes em eventos. “Isso ficava em um informe, podendo ser aberto um inquérito ou não.”
A depender da situação, o que constava no relatório poderia apresentar impacto na carreira pessoal. Em um arquivo classificado como confidencial, pedia o levantamento de alguns nomes para receber a Medalha da Ordem do Mérito Brasília, em 1984. Por ter participado de uma passeata estudantil em 28 de junho de 1968, uma pessoa indicada foi catalogada como contraindicada a receber qualquer condecoração. O relatório ainda informava que o indivíduo foi “identificado através de fotografias existentes”.
A “homossexualidade”, termo usado pelos militares na época, era considerada subversão para o regime autoritário. Um casal de pessoas do mesmo sexo também acaba fichado, e os dados ficavam registrados. “Em uma promoção no futuro, aquela informação constaria nos informes e poderia impedir ou dificultar progressões na carreira”, destacou o historiador e pesquisador.
Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Ditadura Militar e luta armada, Carlos Hugo Studart Corrêa, ter mais de 70 mil pessoas fichadas no DF representa um número assustador. “É um trabalho de investigação muito maior do que imaginávamos.” Ele ressalta que a capital do país não tinha a luta armada e que é possível ter ocorrido injustiças nesse modelo.
“Era um tempo de extremos e se tentava preservar o poder pelas armas”, finalizou o docente.