Venezuelanas enfrentam dificuldades no DF: “Sem saber o que comer amanhã”
A reportagem do Metrópoles circulou por diversas regiões do DF e traçou panorama dos principais centros de acolhimento aos refugiados
atualizado
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Por volta das 11h30, Herminia Zapata, 19 anos, desembarca de um ônibus na Rodoviária do Plano Piloto e parte em peregrinação por diferentes semáforos na área central de Brasília. O objetivo é conseguir recurso para comprar um pouco de frango e refrigerante para sua família de seis pessoas que mora na região do Jardins Mangueiral. A venezuelana é mãe de uma menina de 2 anos e um garoto de 5 anos. Ela não detalhou a idade ou sexo dos outros refugiados com quem reside.
Ao longo da semana, a reportagem do Metrópoles circulou por diversas regiões da capital federal e traçou panorama dos principais centros de acolhimento aos refugiados em situação de vulnerabilidade.
Desempregada desde que chegou ao Brasil, há cerca de dois meses, Herminia afirma que o valor recebido nas ruas não é suficiente para arcar com o sustento da família. “Volto para casa sem saber o que vou comer amanhã. As pessoas não ajudam. Não tem leite, não tem ajuda em casa, a gente não tem [alimentos] para comer, só recebi roupas”, lamenta, apontando para o vestido estampado que usava. Segundo a venezuelana, os costumes da tribo indígena Warao, da qual faz parte, impedem mulheres de trabalhar.
Próximo da entrada do Parque da Cidade Dona Sarah Kubitschek, ao lado do setor hoteleiro, na Asa Sul, Herminia não esconde a falta de jeito com o português. Além de não falar a língua do país, tem dificuldade de se comunicar, inclusive por causa da ausência de alguns dentes na arcada dentária.
A tentativa de superar essa barreira se manifesta no pedido de colaboração que segura ao longo das filas de carros parados nos semáforos, com os dizeres: “Sou venezuelana. Preciso uma ajuda para comprar comida, fralda para minha filha. Obrigado. Deus abençoe”. Diariamente, a refugiada tenta levar para casa a caixa de leite que usa a fim de recolher as doações o mais cheia possível, para sobreviver.
Antes de chegar ao Distrito Federal, ela passou por Pacaraima (RR), Boa Vista (RR), Manaus (AM) e pelo Paraná ─ os três primeiros destinos fazem parte da Operação Acolhida. A refugiada não detalhou de que maneira atravessou a fronteira brasileira. Apesar das dificuldades, Herminia pretende permanecer na capital da República por mais tempo.
Refugiados venezuelanos no DF
Herminia se soma aos 3.178 venezuelanos que chegaram à capital federal entre 2015 e o primeiro semestre deste ano (veja tabela abaixo). Oficialmente, ela ainda não se juntou ao total de refugiados computados pelo banco de dados SisMigra da Polícia Federal (PF). De acordo com a PF, até março de 2022, no DF, vivem mais de 1,7 mil imigrantes venezuelanos residentes e 1,3 mil migrantes temporários.
Dessas pessoas, pelo menos 1,2 mil são assistidas pelo organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também conhecido como Cáritas. A organização chegou a ajudar a família de venezuelanas citadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) no podcast Paparazzi Rubro-Negro, e que viralizou nas redes sociais. As refugiadas citadas pelo mandatário do país não moram mais na Cáritas, que tem uma casa localizada em São Sebastião, mas fizeram parte da rede de apoio por um tempo.
Cristhian Achique, 25, trabalha há pouco mais de um ano na Cáritas. Segundo ele, o local funciona como uma casa de passagem para os migrantes e refugiados. “Atendemos as demandas das pessoas que chegam e não têm emprego e passam por necessidade. Elas passam alguns dias lá até serem encaminhadas para as cidades em que terão emprego e melhores condições”, afirma.
O voluntário explica que o trabalho da casa é totalmente voltado para a caridade. “Ao longo de dois anos, atendemos cerca de 2 mil refugiados.”
O colaborador conta que as pessoas chegam em situações críticas. “A maioria busca por emprego e alimentação. [Na Venezuela], a situação piora a cada dia, e as pessoas acabam saindo obrigadas”, ressalta.
Paulo Henrique Moraes, representante da Cáritas, afirmou, em coletiva de imprensa realizada durante o último fim de semana, que a grande parcela das pessoas atendidas é formada por mulheres.
“Todos os venezuelanos que atendemos aqui na parte da assistência e da garantia de direitos, todas elas são pessoas que buscam empreender, trabalhar. Grande parte são mulheres solteiras, outras casadas, de família. Buscam vivenciar suas vidas de forma íntegra”, destaca.
Outros centros de apoio
Outra comunidade de venezuelanos que passou pela Cáritas, mas se estabeleceu em outra localidade, é a dos indígenas Warao Coromoto. Residindo na região do Café sem Troco, no Paranoá, os refugiados também sofrem com a escassez de alimentos e a falta de trabalho, assim como a maioria dos migrantes espalhados pela capital federal.
Gilberto Oliveira, diretor da comunidade, disse que nenhum membro estava autorizado a conceder entrevista, por medo de sofrer retaliação. “Por conta de o objeto do assunto ser muito delicado [a fala do presidente Bolsonaro sobre prostituição], nós preferimos não nos expor. Nós instruímos a todos a não darem entrevista. Não queremos que a nossa fala seja usada por questões eleitoreiras, nem para um lado, nem para outro”, pontua. Mais de 30 famílias e 140 pessoas residem na propriedade.
O Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) também é responsável pelo acolhimento de estrangeiros no DF. No primeiro semestre deste ano, atendeu 6.336 migrantes e refugiados, sendo 2.550 na capital federal e 3.786 por meio do IMDH Solidário, em Boa Vista (RR).
As pessoas assistidas no DF pelo IMDH pertencem a 44 nacionalidades e 80% são da Venezuela. Outros países de origem recorrentes são: Haiti, Cuba, Paquistão, Bangladesh, Síria e Afeganistão.
Dos venezuelanos atendidos pelo IMDH e residentes na capital federal, entre janeiro e junho deste ano, a maioria concentra-se na região de São Sebastião (31%) e Paranoá (10%). Os 1.755 nacionais da Venezuela estão distribuídos da seguinte maneira no DF:
O IMDH também atende a migrantes e refugiados venezuelanos que residem do Entorno, como: Luziânia, Valparaíso, Novo Gama, Cristalina, Planaltina de Goiás e outras cidades.
A Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI) promove, há 3 anos, o programa Acolhidos por meio do trabalho. Na capital federal, essa pessoas desembarcam na Casa Bom Samaritano, uma chácara construída em um terreno no Lago Sul, doado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O centro de acolhida tem capacidade de abrigar 94 pessoas, e passou a receber migrantes contemplados pelo projeto desde maio do ano passado. Ao menos um integrante familiar é contratado para trabalhar no DF.
Até outubro deste ano, a capital federal recebeu, por meio do programa, 47 venezuelanos contratados e interiorizou 130 pessoas. Eles atuam em restaurantes, shoppings, no setor de alimentos, material de construção e serviços.
Por três meses, eles recebem moradia, alimentação e melhores condições de vida, além de apoio na hora de procurar emprego e novo lar. Como desembarcaram em Brasília diretamente das bases da Operação Acolhida, todos possuem a documentação em dia e trabalham com carteira assinada.
O projeto recebe o apoio de outros institutos e entidades, como o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Agência da ONU para Refugiados (Acnur). Criado há 3 anos, ele é responsável por 92 processos de interiorização para oito estados brasileiros, totalizando 2.222 interiorizações.
Além dos mais de 3 mil venezuelanos residentes na capital federal, vale destacar a chegada dos migrantes cubanos (7.658), colombianos (1.542) e haitianos (1.044). Veja tabela completa elaborada pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), órgão que auxilia na produção de informações qualificadas para a criação de políticas públicas no Brasil referentes ao tema:
De abril de 2018 até agosto de 2022, a etapa de interiorização da Operação Acolhida distribuiu pelo país cerca de 82.822 refugiado. Desses, o DF recebeu 2.101.
De acordo com a Acnur, de abril de 2018 até setembro de 2022, o Brasil abrigou 376.789 refugiados e migrantes da Venezuela. Do total, 311.951 possuem autorização de residência no país. No mesmo período, foram registradas 90.870 solicitações de refúgio dos nativos da Venezuela. Até agosto deste ano, 49.824 pessoas dessa nacionalidade tiveram refúgio reconhecido em território brasileiro.
Polêmica
A Cáritas, organização que fornece assistência a venezuelanos refugiados no DF, ficou sob os holofotes após Bolsonaro citar que, ao visita uma casa em São Sebastião, viu algumas meninas de 14 e 15 anos arrumadinhas e que teria pintado “um clima” com elas.
“Eu estava em Brasília, na comunidade de São Sebastião, se não me engano, de moto. […] Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três ou quatro, bonitas. De 14, 15 anos. Arrumadinhas, num sábado, numa comunidade. Vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na tua casa?’, entrei”, descreveu o presidente no podcast Paparazzi Rubro-Negro.
No podcast, o mandatário do país teria dito ainda que, na casa, as menores estavam “arrumadas para ganhar a vida”, insinuando prostituição infantil. “Meninas bonitinhas de 13 a 14 anos arrumadas no sábado, para quê? Para ganhar a vida”, disse.
O presidente esteve na Cáritas em abril de 2021. O Metrópoles apurou que, nesse dia, acontecia uma ação social para refugiados. A visita não teria sido por acaso, já que a equipe do chefe do Executivo teria acordado com a organização humanitária que Bolsonaro iria ao local.
O encontro do titular do Palácio do Planalto com as mulheres foi transmitido, à época, pelas redes sociais oficiais de Bolsonaro. Nas gravações, foi possível vê-lo conversando com as venezuelanas sobre a saída delas do país natal, bem como fazendo críticas ao isolamento social vigente no período. Em nenhum momento, contudo, o presidente falou sobre prostituição no local ou mostrou descontentamento com a situação.
Repercussão
Na terça (18/10), o presidente Jair Bolsonaro gravou vídeo para pedir desculpas por levantar suspeitas de que garotas venezuelanas estariam se prostituindo nos arredores de Brasília.
Na última segunda (17/10), a coluna do Igor Gadelha, do Metrópoles, revelou como foi o encontro entre a primeira-dama do país, Michelle Bolsonaro, e a ex-ministra Damares Alves com duas das venezuelanas refugiadas citadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em podcast.
O encontro, que aconteceu um dia depois da fala do mandatário em uma casa no Lago Sul, foi intermediado pela embaixadora Maria Teresa Belandria, representante no Brasil do autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó. A diplomata também participou da conversa.
O Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), entidade referência na ajuda a migrantes e refugiados no Brasil, divulgou nota, na última terça-feira (18/10), em repúdio à fala do presidente da República.
Segundo o texto da instituição, responsável por diversas redes de atendimento na capital do país, nunca foi identificado qualquer “indício de exploração sexual infantil” envolvendo essa população. “As falas e expressões do presidente da República que circularam nestes últimos dias causaram grande preocupação e afetaram a comunidade venezuelana, principalmente mulheres e adolescentes”, lamentou irmã Rosita Milesi, diretora do IMDH.