UTI de empresa alvo do MPDFT teve o triplo de mortes que unidade administrada por hospital
Decisão que autorizou 61 mandados de busca e apreensão investiga corrupção no contrato de empresas para gerir UTIs no Iges-DF
atualizado
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Em apenas uma das unidades de terapia intensiva (UTI) geridas pela Domed, empresa investigada pela Operação Ethon, deflagrada nesta quarta-feira (18/8), foram registrados 344 óbitos nos meses de junho, julho e agosto de 2020. No mesmo período, a UTI administrada pela rede pública de Saúde teve 107 mortes, número mais de três vezes menor.
A informação consta no pedido de medida cautelar elaborada pelos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MDFT), responsável pela investigação.
Segundo os investigadores, a situação “só se justifica em razão do quadro de corrupção e de malversação da coisa pública instalado no Iges-DF, em favor de um ‘clube’ de empresas chefiadas por pessoas sem escrúpulos que se alimentaram das verbas do Estado e, por consequência, deixaram um rastro de dor e sofrimento pelas dezenas de mortes de pacientes causadas e pela dor de seus familiares”.
“Todo esse trágico resultado, em grande medida, poderia ter sido evitado”, diz outro trecho do documento, o qual o Metrópoles teve acesso.
A UTI Domed, localizada no 1° andar do Hospital Regional de Santa Maria (HRSM), apresentou taxa de mortalidade de 86,16%, enquanto a UTI gerida pela própria unidade de saúde, que fica no 5° andar, apresentou taxa de 52,36%. “Uma diferença de 33,8% entre dois setores localizados no mesmo nosocômio”, cita a cautelar.
“Isso significa que, lamentavelmente, os pacientes internados no HRSM foram expostos a uma roleta russa. Alguns tiveram a sorte de escapar dos leitos da Domed, e outros, desafortunadamente, não”, diz o documento.
Uma troca de mensagens entre dois alvos da operação, Frederico Azevedo e Ivan Castelli, ocorrida em 29 de junho de 2020, revela a preocupação de um dos gestores quanto à quantidade de um medicamento utilizado em pacientes intubados, o Rocurônio. “Vamos ter prejuízo”, disse Castelli quando Ivan sinalizou que o médico havia solicitado 10 ampolas do medicamento. “Estão usando o Rocurônio para manter o paciente em ventilação mecânica. Vamos ter prejuízo, pois estas 10 ampolas vão custar R$ 2.750 aproximadamente”, escreveu.
“Talvez se Ivan Castelli providenciasse os insumos mínimos para a UTI Domed com a mesma velocidade com que fez os cálculos de eventuais prejuízos, a trágica situação dos pacientes do 1º andar seria outra”, diz a cautelar, assinada por seis promotores do Gaeco.
Operação Ethon
Promotores do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) deflagraram, na manhã desta quarta-feira (18/8), a Operação Ethon para apurar possível superfaturamento milionário em contratação emergencial, entre março e outubro do ano passado, de leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) pelo Instituto de Gestão Estratégica em Saúde do Distrito Federal (Iges-DF). A ação tem apoio da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF).
Foram cumpridos 61 mandados de busca e apreensão no DF, nos hospitais de Base e de Santa Maria, e em cinco estados: Amazonas, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. O ex-secretário de Saúde, Francisco Araújo (foto principal), é um dos alvos. Conforme o Metrópoles publicou no último sábado (14/8), ele embarcou para Manaus assim que soube que seria intimado a depor na CPI da Covid, no Senado Federal.
Francisco Araújo e outros auxiliares chegaram a ser presos pela Operação Falso Negativo enquanto ainda comandavam a pasta por possível superfaturamento de testes de Covid-19. O caso tramita sob sigilo no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Organização criminosa
A investigação, que foi conduzida diretamente pelo Ministério Público, revelou um esquema ilegal instalado no Iges-DF que resultou no desvio de milhões de reais em dois contratos destinados ao fornecimento emergencial de leitos de UTI’s, entre o período de março a outubro de 2020.
As empresas contratadas foram a Domed, responsável por 50 leitos no Hospital Regional de Santa Maria e a Organização Aparecidense de Terapia Intensiva (Oati), que forneceu 20 leitos no Hospital de Base e outros 10 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de São Sebastião.
Para além do superfaturamento de preços ofertados pelas empresas que participaram da seleção e do direcionamento das contratações em favor das empresas, as investigações também apontaram que as contratadas não forneceram insumos, medicamentos e mão de obra em quantidade e qualidade exigidos.
As ilegalidades praticadas, segundo os promotores, tiveram como consequência a ocorrência de altíssimas taxas de mortalidade nos leitos de UTIs de alguns hospitais administrados pelos suspeitos.
Contrato milionário
Em junho de 2020, equipes do MPDFT fizeram vistorias nas UTIs dos hospitais de Base e de Santa Maria. O foco era verificar as condições e real ocupação dos leitos nos locais dedicados ao combate ao coronavírus. Dessas visitas surgiram constatações de erros e envio de recomendação ao Iges-DF, responsável pela gestão das duas unidades.
A Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus) chegou a emitir documento, recomendando ao Iges-DF a anulação do termo aditivo ao contrato com a Organização Aparecidense de Terapia Intensiva (Oati) para a instalação de leitos de UTI. A empresa foi a terceira colocada no processo seletivo e apresentou proposta mais cara que as duas primeiras.
Segundo a promotoria, em março do ano passado, o Iges-DF celebrou contrato emergencial com a empresa Domed para a gestão de até 70 leitos de UTIs destinados a pacientes com Covid-19. Inicialmente foram instalados 50 leitos no Hospital Regional de Santa Maria pelo valor de R$ 4.282,26 por dia/leito.
Ainda segundo a Prosus, em abril de 2020, “embora a Domed tenha apresentado interesse na contratação dos 20 leitos remanescentes do contrato, o Iges-DF consultou a segunda colocada na concorrência, o Instituto Med Aid Saúde (Imas).
A empresa também manifestou interesse na contratação dos leitos, que estariam disponíveis em 15 dias. O valor seria de R$ 5.700,00 por dia/leito. Mas a proposta foi rejeitada pelo Iges-DF com o argumento que o prazo de instalação não poderia ultrapassar 7 dias por se tratar de “urgência máxima”
O MPDFT detalhou que a Oati, terceira colocada, foi então convocada, e apresentou proposta no valor de R$ 5.857,02 por dia/leito. A presidência do Iges-DF solicitou urgência ao setor responsável e fechou contrato com a empresa para a gestão de 20 leitos de UTI no Hospital de Base.
Em junho, novo aditivo contratou mais 20 leitos da Oati pelo valor de R$ 5 mil por dia/leito. Esse aditivo representa aumento de 100% em relação ao contrato inicial com a empresa, o que não é permitido pela Lei de Licitações.
A Prosus também verificou que, à época, estava aberto o processo seletivo para contratação de outros 40 leitos de UTI e que, por isso, não haveria justificativa para a assinatura do termo aditivo. De acordo com a recomendação, o valor praticado pela Oati “é expressivamente superior ao praticado pela 1ª colocada, em evidente violação ao princípio da economicidade”.
Ethon
O nome da operação faz alusão a Ethon que, segundo a mitologia grega, era o abutre enviado por Zeus diariamente ao monte Cáucaso para devorar o fígado de Prometeu. O fígado de Prometeu se reconstituía completamente para, no dia seguinte, voltar a ser devorado por Ethon.
O Metrópoles acionou a defesa dos investigados na ação do MPDFT, mas, até a última atualização desta reportagem, ninguém havia se manifestado. O espaço segue aberto para possíveis declarações.
Por meio de nota, o Iges-DF comentou a operação deflagrada nesta quarta e justificou que os contratos em questão “foram firmados em gestões anteriores, antes de março de 2021, quando a atual direção assumiu a instituição”. Segundo o instituto, ações de controle interno, promovendo auditorias em todos os contratos firmados têm sido feitas. “Esse trabalho vem sendo feito rigorosamente pela Controladoria Interna. Caso sejam identificadas irregularidades, providências serão adotadas para solucioná-las”, disse.
A Domed também se manifestou e negou as acusações. “Rechaçamos veemente as acusações sobre eventual sobrepreço, baseadas em cálculos claramente equivocados, conforme já demonstramos em manifestação protocolada junto ao TCDF. E ainda, diferentemente do apontado pela CGDF, nosso contrato trouxe economia aos cofres públicos”, disse a empresa.